Uns milhares de anos depois de Judas ter dado a Cristo o Beijo da Morte, José Sócrates infligiu a António Costa a Agressão da Vida. É parecido mas funciona ao contrário: em vez de ser um beijo que mata, é pancada que vivifica. Não é traição disfarçada de amor, é colaboração disfarçada de ódio. Dir-se-ia que Sócrates pediu emprestado a Judas o estratagema – e, como tudo o que Sócrates pede emprestado, é improvável que devolva. Fez algumas adaptações interessantes: em vez de um beijo, um texto no Expresso. Tendo em conta que se trata de um marco simultaneamente político e teológico, talvez valha a pena analisá-lo com cuidado.
Sócrates começa por recordar que a maioria absoluta de que Costa agora desdenha “foi a única que o PS obteve em democracia”. Mesmo sem ser em democracia, foi a única que o PS obteve. Durante o Estado Novo, e até antes disso, o PS não obteve qualquer maioria absoluta. Às vezes, Sócrates gosta de ser mesmo muito preciso. Por exemplo, quando fala da direita política. Não sei exactamente que outras direitas há, mas Sócrates embirra especialmente com a direita política. Sobre a direita dos lacticínios, por exemplo, nunca disse uma palavra. Do mesmo modo, quando Sócrates diz que não esperava que a direcção do PS o “atacasse de forma tão injusta”, volta a ser redundante: não me lembro de Sócrates ter sido atacado de forma justa. Nunca, se a memória não me falha, Sócrates disse: “Ora cá está um ataque justíssimo que me estão a fazer. Parabéns aos seus autores, que tocaram num ponto em que eu, de facto, estive muito mal.” Aos ataques da direita – que são, na verdade, os ataques injustos da direita política – juntam-se agora os ataques (também injustos, claro) da esquerda (também política, calculo). O problema torna-se mais complexo porque Sócrates acusa Costa de fazer o mesmo que a direita (maldizer a maioria absoluta do PS) enquanto faz o mesmo que a direita (recordar a Costa que fez parte do governo de Sócrates). É neste ponto que o texto de ataque ao Costa se transforma num texto de apoio ao Costa – o que só está ao alcance dos grandes autores. Nas vésperas das legislativas percebemos finalmente quem tem afinidades políticas com José Sócrates. Quem tem exactamente o mesmo discurso que José Sócrates. É a direita – e a direita política, o que é ainda mais extraordinário.
O PS precisa apenas de um cartaz, nestas eleições. Uma fotografia de Costa com a legenda: “Sócrates odeia-me, tal como a direita. Agora pensem.”
(Crónica publicada na VISÃO 1383 de 5 de setembro)