Hoje foi o dia em que fechou o ano político, com o tradicional debate sobre o Estado da Nação. As grandes questões do país foram discutidas no Parlamento com rigor, elevação e competência. Costa, Jerónimo, Catarina, Negrão (Rio não é deputado) e Cristas mostraram utilidade, partilhando ideias, argúcia e profundidade. Este também foi o dia em que decidi começar um artigo com uma ficção de riqueza apenas comparável a algumas das promessas constantes dos programas eleitorais com que os nossos partidos normalmente se apresentam a eleições.
Na verdade, hoje foi um dia mau para a política portuguesa – mais um, talvez o pior do ano, o que não deixa de ser extraordinário se tivermos em linha de conta que Isabel Moreira não usou da palavra.
Durante cerca de quatro horas, PS, PCP, BE, CDS e PSD esforçaram-se mais a debitar narrativas gastas do que a contribuir para tornar o dia mais agradável aos estóicos que, como eu, decidiram investir uma manhã a escutar as coisas certamente importantes que os nossos eleitos tinham para dizer ao país. Resumo possível da conversa: o Governo fingiu que está tudo bem, o CDS jurou que está tudo mal, o Bloco e o PCP fizeram um simulacro de rebelião e o PSD, bom, o PSD nada disse de substancial. Quase tudo foi triste; quase tudo foi enfado.
Como era expectável, a saúde marcou o dia. Mas quem ansiava por um debate profundo sobre as profundíssimas questões que afectam o SNS ficou-se apenas pelo desejo, porque o que se ouviu foram discursos panfletários na forma e fúteis no conteúdo. Dizer que as urgências hospitalares estão caóticas, insinuar que há doentes a morrer por falta
de resposta do SNS ou afirmar que o Governo PS é o único Culpado Disto Tudo é fácil. Difícil é explicar porquê.
O que se passa hoje na Saúde é apenas uma consequência – as causas estão muito lá atrás. Não é porque o Governo decidiu (erradamente) reduzir a semana de trabalho dos funcionários públicos para as 35 horas semanais que as dificuldades são as que são – e são cada vez mais. É porque, à imagem do que aconteceu noutros sectores – com a Segurança Social à cabeça -, nenhum Governo em democracia demonstrou capacidade para reformar o SNS, de modo a torná-lo sustentável sem prejudicar a qualidade assistencial. Em vez disso, todos os partidos que governaram, sem excepção, têm optado por enterrar a cabeça na areia, fingindo que estão a tratar do assunto enquanto nos bastidores promovem suborçamentações crónicas e assinam contratos-programa com os hospitais que sabem ser impossíveis de cumprir.
O que se aplica à saúde, aplica-se à generalidade das áreas mais estratégicas da governação. Entre a realidade e a ficção, os políticos indígenas, com raras e surpreendentes excepções, não têm hesitado pela segunda. Os que tentam mudar algo de substancial são triturados pelo sistema. E o resultado está diariamente à vista nos hospitais, nos tribunais, nas ruas, nos cafés – e, pelo menos um dia por ano, no plenário da Assembleia da República. Como sublinhei no título, para espelhar devidamente o que se passou esta manhã no debate do Estado da Nação, este espaço devia estar em branco. Fica para o ano.