O leitor poderá estar incrédulo com o título e indagar – existem judeus negros? A resposta é sim, e a história, resumidamente, é a seguinte:
De acordo com a Bíblia hebraica/Antigo Testamento, um importante documento histórico-teológico, os judeus são descendentes de Abraão, que teria vivido no Oriente Médio, por volta de 2 mil anos antes de Cristo. O Patriarca está ligado à criação das três religiões monoteístas: através de Isaac, o judaísmo-cristianismo e do outro filho, Ismael, o islamismo.
Na linha sucessória hebraica temos o rei David (1.040-970 a. C) e o seu filho Salomão (990-931 a. C), responsável pela construção do importante templo de Jerusalém. Durante o seu reinado, Salomão recebeu a visita da bela rainha negra Sheba, do reino da Arabia (hoje Iémen, Somália, Eritreia, Etiópia e Djibuti). Conta a lenda que, apaixonados, tiveram um filho – Menilak I, que deu origem à comunidade de judeus negros nesta região.
Na Etiópia, num difícil contexto de constantes guerras tribais – e apesar das inúmeras e intensas tentativas de conversão forçada perpetradas por cristãos e islâmicos -, a comunidade de judeus negros manteve a língua hebraica (mesclada com o aramaico e dialetos nativos), a fé e a identidade religiosa – seguiam o calendário religioso e os principais ritos judaicos.
Provavelmente por serem negros, o reconhecimento como judeus não foi pacífico – apenas em 1977 foram reconhecidos pelo Estado de Israel como descendentes de judeus, possibilitando e emigração para a (também) sua terra prometida. No início, apenas algumas centenas emigraram. No entanto, o contexto de conflitos armados e, especialmente, a grande fome na Etiópia, de 1984 e 1985, provocou o exílio, nomeadamente para os campos de refugiados no vizinho Sudão, onde foram denominados de ‘falashas’ (estrangeiros, exilados, invasores).
É num contexto de brutal guerra civil na Etiópia que (mais uma vez) se apresenta a forte solidariedade étnica-religiosa dos judeus (‘no one gets be left behind’). Em novembro de 1984 e janeiro de 1985, a Mossad e a CIA (serviços secretos israelense e norte-americano) montam a denominada ‘Operação Moisés’ (financiada por judeus residentes nos Estados Unidos), uma evacuação aérea de cerca de 7.700 judeus-etíopes.
O segundo repatriamento, denominado ‘Operação Salomão’ (que foi literalmente o pai dos judeus-negros), foi em maio de 1991, considerada uma das mais espetaculares operações de repatriamento: em apenas 25 horas, 35 aviões transportaram 14.325 judeus etíopes para Israel. Essa extraordinária operação de resgate foi coordenada pelo então embaixador de Israel na Etiópia, Asher Naim. Naim descreve em detalhes essa operação no livro Saving the Lost Tribe: the rescue and redemption of the Ethiopian Jews (2003).
Para os cinéfilos, recomendo o filme The Red Sea Diving Resort (2019), protagonizado por Chris Evans. A escolha deste ator não foi acidental: é o super-herói Capitão América, reforçando a ideia (ideologia?) da América (heróica) cuja ‘divine providence’ é ‘salvar’ o mundo.
E a situação atual desta peculiar comunidade étnico-racial e religiosa? Segundo os dados mais recentes, 90% dos judeus-etíopes vivem em Israel: 135.500 pessoas; destes, mais de 50 mil já nasceram no país. E os judeus-negros encontraram finalmente a (sua) ‘promised land’? Nem por isso: são vítimas de racismo (são negros); a maioria está excluída do processo de integração social, cultural e religiosa na sociedade israelense; o rendimento médio per capita é 40% menor do que a média nacional; 38,5% das famílias vivem abaixo do limiar de pobreza. Nas minhas deambulações pelas ruas de Jerusalém, encontrei inúmeros judeus-etíopes a vender bugigangas, lembrando a mesma situação dos marroquinos e senegaleses nas ruas de Paris ou Barcelona.
Portanto, ‘no one gets be left behind’ e ‘promised land’? Não para os judeus negros, pois mesmo em Israel continuam a ser ‘falachas’ – refugiados, estrangeiros na sua bíblica terra prometida.
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