O rapper catalão Pablo Hasél, cujas letras expressam fortes críticas sociais e políticas, desencadeou uma enorme onda de protestos em Espanha. Ter sido condenado pela justiça por desobediência civil, enaltecimento do ‘terrorismo’ e insultos à coroa espanhola (o ex-rei Juan Carlos é o seu alvo predileto), catapultou-o, para alguns, como um símbolo da liberdade de expressão e, para outros, como um agente de incitamento ao ódio.
Esse particular acontecimento em Espanha suscita algumas questões: o que é o rap? Quais são as suas principais características? É meramente uma expressão cultural-musical, uma crítica à sociedade ou simplesmente um incitamento ao ódio?
O RaP (sigla de Rhytm and Poetry) é um estilo musical que surgiu, em meados da década de 1970, nos bairros pobres e guetos nova-iorquinos, em particular no Bronx, com forte concentração de negros afrodescendentes. Na verdade, faz parte de uma subcultura jovem urbana, denominada Hip Hop, movimento criado pelo artista conhecido como Afrika Bambaataa. O Hip Hop abrange quatro expressões artísticas: emcee/Rap (voz), DJ/turntablism (música), b-boying/break dance (dança) e writter/graffiti-street art (arte urbana).
Há dois diferentes estilos (conteúdo das letras e estética) de rap: o ‘gangsta’ e o ‘crítico’.
O rap (de) ‘gangster’ surgiu na Califórnia, na década de 1980, pelas mãos do artista com o nome de Ice-T. Posteriormente, apareceu o 50 Cent, com um estilo mais comercial, tornando-se num dos mais conhecidos e populares deste segmento musical. Os rappers ‘gangsta’ abordam e exaltam temas relacionados com a sua vivência, como armas, pobreza, criminalidade, drogas, violência, racismo. Por causa da sua visibilidade negativa, associado ao facto de que predominam os jovens negros pobres da periferia das grandes cidades, tem sofrido o estigma social (Goffman) que o liga à delinquência e à marginalidade. Este estilo praticamente não existe em Portugal.
O rap ‘crítico’, por sua vez, é de consciência – centra-se na exaltação das lutas de líderes políticos negros (como Martin Luther King, Malcolm X, Mandela), valoriza as origens étnico-raciais e reforça a identidade (catalã, no caso de Pablo Hasél). No Brasil, temos o exemplo do rapper crítico Gabriel, o Pensador. Em Portugal, os representantes são o ‘underground’ e talvez o mais genuíno Kromo di Ghetto (que entrevistei na Cova da Moura) e Sam the Kid, Mind da Gap, General D. Black Company e os mais românticos, do estilo que podemos classificar como ‘Rappers Morangos com Açúcar’, DaWeasel e Boss AC.
O rap é produzido e consumido por jovens, na sua maioria negros, que, geralmente, partilham uma situação de forte exclusão social. A partir dos bairros sociais, da periferia das grandes cidades, os jovens utilizam ‘a voz do gueto’ como um instrumento de autoafirmação (cultural) e de resistência (política), como discurso crítico, denunciando os problemas que afetam o seu quotidiano. Com uma mensagem direta, através da letra ritmada, os rappers assumem-se como porta-vozes dos mais desfavorecidos. Tentando criar uma consciência política, empregam uma linguagem de denúncia contra o desemprego, pobreza, áreas urbanas degradadas, discriminação, opressão, violência policial, injustiças, intolerância, preconceito e o racismo, ações exercidas pelo ‘Outro’, os ‘brancos’, de grupos económicos e políticos mais favorecidos.
Para compor as letras, os rappers inspiram-se na vida real, no seu dia-a-dia e expressam, pelo Rhytm (ritmo) e Poetry (poesia), a maneira como vivem a (sua) realidade social. Eles empregam as expressões e a linguagem que utilizam habitualmente na sua oralidade de grupo, muitas vezes, criando mesmo um verdadeiro ‘dialeto’, de difícil tradução/interpretação. É um estilo intervencionista, já que o principal objetivo é falar sobre questões étnico-raciais e sociais, relatando e expressando a dura realidade do bairro, provocando, desta forma, uma reflexão crítica sobre a sociedade.
Devido aos meios de comunicação de massas e à cultura globalizada-americanizada, o Hip Hop hoje em dia é um fenómeno difundido no mundo todo. Os modos de vida, padrões e símbolos estão globalizados e os problemas sociais que afetam as grandes cidades são similares em todo o mundo. Inseridos no complexo fluxo cultural global, os jovens, numa bricolage de ressignificações culturais (no sentido preconizado por Lévi-Strauss), reinterpretam os ícones mundiais do Hip Hop, a partir das suas experiências e representações musicais, estéticas e simbólicas locais.
Portanto, o rap, fenómeno de uma subcultura jovem urbana globalizada, pode ser considerado (e utilizado) como expressão cultural, musical e estética, mas, também, como forma de consciência política, luta contra a opressão e, na sua forma mais radical, até mesmo o incitamento ao ódio.