Quem são estas pessoas que moram aqui ao lado? Evitamo-las tanto quanto possível. Se vamos para sair e os ouvimos a chegar, esperamos atrás da porta, fazemos tempo em silêncio e só saímos quando não há risco de nos cruzarmos nas escadas. Mas, às vezes, distraímo-nos, entramos no elevador e estão lá, carregados de sacos do supermercado, ou a regressarem de passear o cão. Envergonhados da nossa própria voz, soltamos um cumprimento sumido e, depois, um silêncio longo, doloroso.
Quando eu tinha a idade do meu filho mais novo, a televisão portuguesa só começava quase à hora de jantar. Na minha região, conseguíamos apanhar os canais espanhóis. Nesse tempo, admirava-me com os prémios ganhos pelos concursantes do Precio Justo, com os anúncios, com quase tudo. Depois, quando tinha a idade do meu filho mais velho, ficava acordado até tarde, à espera de uns filmes mais atrevidos que podiam chegar ou não. Em qualquer dos casos, habituava-me com curiosidade à voz espanhola de vários atores de Hollywood.
Nesse tempo, ainda era preciso parar na fronteira. A partir de certa altura, começou a bastar o bilhete de identidade. Mesmo assim, Elvas era um mundo e Badajoz era outro. Comprávamos sacos de rebuçados com pinhões, caramelos que se colavam ao céu da boca, latas de ananás e de pêssego, melocotones, comprávamos relógios digitais, teoricamente à prova de água, que se acertavam com a ponta de uma esferográfica.
Numa das ocasiões em que fui com os meus pais a Espanha, ficámos com as chaves trancadas dentro do carro. Usando um arame, usando jeito e calma, não demorámos muito a abri-lo, mas permaneceu esse medo de ficarmos fechados em Espanha.
Como se diz arame em castelhano? Tenho orgulho no meu portunhol. O esforço dos portugueses para falar línguas nasce da generosidade. A vontade de comunicar com o outro exige desprendimento, é preciso ser capaz de não se levar demasiado a sério, de não ter medo de errar e, às vezes, tocar o ridículo, como uma daquelas máquinas que já não existem: hola, dame una moneda.
Avaliando pelos tradutores que conheço, sofre-se bastante mais a traduzir entre português e castelhano do que entre português e húngaro. Os tradutores ibéricos são avaliados em todos os artigos, pronomes e proposições. Não há falante de portunhol, como eu, que não sugira listas alternativas de sinónimos e que não se escandalize com detalhes. Já um tradutor que trabalhe com português e outras línguas, finlandês, japonês, tem liberdade para mudar a ordem dos complementos, para suprimir adjetivos, para mudar verbos, para encurtar frases que lhe pareçam demasiado longas, como esta.
Há já alguns anos, fiz um circuito de apresentações e de leituras na Lituânia e na Polónia acompanhado por três autores espanhóis: um andaluz, um galego e um madrileno, que era o único que realmente se identificava como espanhol. Aprendemos a beber vodka, comemos inúmeros pernis de porco no forno e houve uma certa empregada de mesa em Vilnius pela qual todos nos apaixonámos. Aqui, na península, teríamos encontrado mil diferenças; lá, surpreendíamo-nos com as mesmas novidades, reparávamos nos mesmos pontos, entendíamo-nos.
Nuestros hermanos? Só se estivermos a falar daqueles hermanos que foram separados à nascença, criados por pais completamente diferentes e que, depois de muitos anos, por enorme acaso, se apercebem de que são hermanos. Normalmente, essas histórias dão belos telefilmes.
Quem são os cantores que os espanhóis ouvem? Imagino que essa seja a pergunta final e impossível do Quem quer ser milionário? Os concursantes de lá também não sabem responder sobre nós, claro. Não fazem a mínima ideia acerca de quem são os Xutos e Pontapés. Talvez para compensar, uma vez por ano, no festival da canção, lá vêm eles contracorrente: Portugal, diez puntos.
Apesar do Almodóvar, qualquer português que já tenha ido ao cinema, conhece mais realizadores americanos do que espanhóis. O mesmo acontece com escritores, artistas plásticos, agentes de cultura ou personalidades referidas na revista Hola! E vice-versa, sempre vice-versa em tudo.
O voo entre Madrid e Lisboa demora cerca de uma hora. Com a diferença horária, aterra-se no aeroporto da Portela à mesma hora a que se partiu de Barajas. E entre tantas perguntas, outra: se o tempo permanece, como pode mudar o espaço?