Depois de enorme esforço e de terem chegado a porto seguro, passadas as primeiras semanas, há ainda uma aura de medo, incredulidade que lhes põe nos olhos um alheamento profundo.
Samira (nome fictício) tem 17 anos. Nasceu e cresceu em Cabul já na era pós-talibã. Usa o lenço a cobrir-lhe o cabelo desde o momento em que se tornou mulher e fá-lo com orgulho.
Até há alguns meses ia à escola e preparava-se para prosseguir os estudos em medicina.
“– Ainda há muitas mulheres que se recusam a ser vistas por um médico homem. Agora é simplesmente impossível.”
A mãe criou uma organização de empoderamento feminino, alertando para a necessidade de as mulheres terem a sua própria independência financeira, mais de meio caminho andado para a liberdade.
“– Até à recente chegada dos talibãs, tínhamos a nossa sede a abarrotar de mulheres em diferentes cursos e conferências. Vivíamos um clima entusiasmante de mudança, sobretudo nas gerações nascidas e criadas debaixo do regime talibã. Agora recuámos não vinte mas cinquenta anos”, diz com uma tristeza imensa na voz.
Samira e a mãe estiveram escondidas durante semanas, mudando de local de pernoita todos os dias.
“As afegãs tinham conquistado o direito e a liberdade de viverem sozinhas, de fazer carreira de assumirem o seu destino. Estas mulheres estão à partida condenadas à morte. Não apenas porque podem ser apontadas como heréticas, e como tal assassinadas em plena via pública, mas porque não se podem bastar a si mesmas já que estão impedidas de sair de casa”
O regime instalado não tolera mulheres livres e impõe a tirania, que vai buscar a um recôndito do Livro, descontextualizado e adaptado pelos estudantes do Corão, para dissimular o medo que lhes inspira o outro sexo.
“– Às vezes, parece-me que têm medo de nós. Que nos amordaçam porque se sentem frágeis perante o poder que temos e que nos vem da nossa maternidade.”
Será talvez uma explicação, mas o medo, o terror está do lado das mulheres que, dum dia para o outro, ficaram impedidas de sair à rua sem um acompanhante masculino seu familiar (pai, marido, filho ou até cunhado ou sogro, no caso de ficarem viúvas).
“As afegãs tinham conquistado o direito e a liberdade de viverem sozinhas, de fazer carreira de assumirem o seu destino. Estas mulheres estão à partida condenadas à morte. Não apenas porque podem ser apontadas como heréticas, e como tal assassinadas em plena via pública, mas porque não se podem bastar a si mesmas já que estão impedidas de sair de casa.”
No Afeganistão de 2021, uma mulher que não tenha um familiar homem está condenada a morrer à fome, ao frio, à doença mais comum.
Algumas vão sobrevivendo com a ajuda de vizinhos que não se reveem neste regime masculino e sobretudo misógino. Mas o medo tomou conta de todas as vidas, de todas as ruas.
A solidariedade recua a cada execução pública e assim se vão construindo muros invisíveis, percetíveis e simbolicamente assumidos pelas burkas que cobrem mães de família por vezes impedidas de alimentar os seus filhos.
Durante semanas falou-se delas, das mulheres afegãs, do regime de terror imposto em menos duma semana após a lavagem de mãos das forças americanas. Depois caiu o silêncio, um véu que veio carregar ainda mais a cor negra dos trajos que tudo ocultam: o corpo, o espirito e a liberdade.
No meio desta desoladora noite, a indómita vontade das mulheres afegãs, saindo à rua, afrontando o poder e arriscando a vida, é um grito (abafado pela pouca difusão) de liberdade, que não se fica pela conjugação do plural nos dois géneros, nem pelas discussões infrutíferas.
O que faz falta na luta pela equidade é a sororidade entre todas as mulheres, independentemente do seu credo, da sua etnia , do seu país.
Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.