Mais do que uma manifestação de interesse, devo confessar que sou, não direi viciada, porque não me posso dar ao luxo de adições que me tomem tanto tempo, mas uma ávida consumidora de séries policiais.
Ou não tivesse eu embarcado nesta loucura de doutoramento em criminologia. E, como se ainda não bastasse, tive logo que escolher para tema de estudo o tráfico de crianças em contexto migratório.
Ora, ontem, para mim, foi o “azar dos Távoras”!
Quando me dispunha a descontrair um bocadinho (até mesmo abobrar) defronte da TV, dou por mim perante aquela que é, para mim, uma das minhas séries policiais favoritas: Alex Hugo.
Um parêntesis para dizer que algumas produtoras, aliadas certamente a políticas de sensibilização e educação cívica, começaram aqui há anos a focar temas atuais, alertando para modus operandi criminais, os quais, por serem levados ao público em formato lúdico, conseguem um impacto exponencialmente maior que qualquer campanha didática. Até o Brasil (pré-bolsonaro, bem entendido) seguiu este formato e deu à tela novelas como Salve Jorge e Filhos da Terra: uma sobre o aliciamento de jovens brasileiras para a imigração ilegal rumo à Europa, fazêndo-as cair nas malhas das redes de tráfico para exploração sexual, e outra sobre o drama e a integração de refugiados.
Por cá, o que gostamos mesmo é de ver o Big Brother e quem vai para a cama com quem. Chamamos-lhe “um estudo sociológico” para diminuirmos a nossa vergonha de, ancestralmente, gostarmos de espreitar o vizinho pelo buraco da fechadura.
É um negócio realmente rentável e o risco, quando comparado, é praticamente nulo. Senão vejamos: o doador, voluntário ou não, entra por seu próprio pé, legal ou ilegalmente, no país e cada um dá, no mínimo, dois rins, dois pulmões, duas córneas, pele e finalmente coração
Pois bem, ontem, sem que nada o fizesse prever, a minha série debruçou-se sobre o mais ignóbil, vil e animalesco dos tráficos: o dos órgãos.
O desespero é de facto a mais mortífera das armas. Pode levar qualquer um a matar ou a deixar-se matar em nome da sobrevivência.
O que me… chocou? Não, o que me indignou foi que, passados anos, se assumisse, por fim, que o tráfico de órgãos em contexto migratório existe na Europa e que nem sempre é fruto duma venda “voluntária” para pagar uma passagem, um contrato ou uma vida.
O que a série mostrou ontem é que há crianças, sobretudo as desacompanhadas, as que ninguém reclamará, que são retalhadas até à morte para “abastecer” este mercado.
É um negócio realmente rentável e o risco, quando comparado, é praticamente nulo. Senão vejamos: o doador, voluntário ou não, entra por seu próprio pé, legal ou ilegalmente, no país e cada um dá, no mínimo, dois rins, dois pulmões, duas córneas, pele e finalmente coração.
Para o recetor do órgão, pouco interessa de onde vem e em que condições. É também o desespero (e neste caso o dinheiro) a gritar mais alto.
Mas há outro mercado esse ainda mais hediondo: aquele a que chamo de “recauchutagem”.
Grandes magnatas que vão substituindo “peças”, tentando dessa forma enganar a morte. Para eles, quanto mais fresca for a carne, melhor e dinheiro não é problema.
Naturalmente que estas remoções são feitas em clínicas clandestinas e não vale a pena dizer que Portugal está fora deste mercado porque não tem “a tecnologia suficiente para tal” – argumento já ouvido por mim. Como se se estivesse à espera que se recorresse ao SNS para uma coisa dessas! Muito gostamos nós de tapar o sol com a peneira.
O episódio de ontem passa-se numa área remota entre a França e a Itália. Tão remota e bucólica que só se ouve o balir das cabras e o cantar dos riachos.
Mas, se apurarmos os ouvidos, há gritos neste paraíso.
Sob pena de me repetir (e fá-lo-ei até à exaustão ou até que me provem – vai ser dificil! – o contrário), combater estes crimes só é quando houver a coragem de combater a origem da necessidade de fuga ou pelo menos torná-la segura e regular.
Até lá, assistiremos como se fosse um filme de ficção, a uma realidade demasiado macabra. Antes mudar de canal e embrutecer com os BB desta vida.