
As histórias humanas que importam são as que perduram. Há algumas que nos causam breves vislumbres imaginários de outras vidas que poderíamos estar a viver, que nos derretem de saudades.
Tiago Fonseca e Sara Goulart são um casal que enfrenta junto o isolamento social causado pela pandemia da Covid-19. Apesar dos tempos conturbados que estão a viver, são felizes confinados no seu apartamento na Lapa, em Lisboa. Mas a sua felicidade tornou-se uma coisa inquieta, a dar asas dentro deles, como se estivesse à procura de uma abertura para voar para longe. Como não pode voar para longe – e em vez de cada um deles passar o tempo a lamentar o que poderia ter sido e a questionar o que deveria ser em tempos de quarentena – Tiago e Sara inventaram a fórmula perfeita:
- um pátio interior para onde dão todos os apartamentos do seu prédio
- uma parede grande no prédio em frente
- um projector que o Tiago trouxe emprestado da empresa
- um portátil e uma boa coluna de som
- pipocas e vinho branco
- mantas e cadeiras na varanda
E voilá! Criaram todo um festival de cinema no prédio onde vivem. Pelo menos os moradores de sete apartamentos conseguem sentir a magia a acontecer – e sem torcicolos. Afinal, o ecrã é tão grande como o da maioria das salas de cinema do país.
Sara Goulart trabalha em produção de projectos artísticos e há anos que olhava para aquela parede do prédio ao lado e pensava que era perfeita para projectar cinema da varanda. Há anos que pensava que os bons filmes merecem ser partilhados. Aqueles filmes que são um instrumento óptico que nos facilitam discernir aquilo que nunca conseguiríamos descobrir sozinhos.
Mas agora tudo passou a fazer mais sentido. Agora parece que há urgência naquilo que tem de ser feito. O conceito andou a balouçar nas margens da consciência e depressa passou à acção. Quando projectaram o primeiro filme, Tiago e Sara sentiram aquela condição maravilhosa, sem nome, num certo estado de graça: a partilha desinteressada, sem nada esperar em troca, um acto nobre que de repente ganhou um propósito.
Na paisagem da sua imaginação, esta foi a forma que eles encontraram de repartir com os vizinhos alguma coisa de belo, mas também de ignorar a solidão súbita que se apoderou deles fechados em casa. Se houve algo que esta crise provou a cada um de nós é que uma das fontes de alegria luminosa nas nossas vidas passou a ser a partilha de ideias, projectos e sonhos. E provou mais: que poucas coisas nos trazem mais alento do que o entrelaçamento quente que a arte proporciona – e não apenas o cinema, também a música, a literatura, a poesia…
Mas voltemos ao cinema na varanda. Sara Goulard está a planear um programa completo e diversificado de filmes e assim que as noites aquecerem os dois começarão a projectar com regularidade. A ideia é estabelecer um horário e convidar os vizinhos a participarem também no alinhamento artístico.
O único problema que o Tiago, que é engenheiro de formação, tentará resolver nas próximas sessões de cinema ao ar livre, é que – se eles tiverem roupa no estendal – não conseguem ler as legendas…
Mas, ao bom jeito do “Cinema Paraíso”, um dos mais populares e amados filmes da história do Sétima Arte, há coisas que não precisam de legendas. “Cinema Paraíso” é um filme sobre o poder dos sonhos e recorda-nos que podemos, e devemos, continuar a sonhar.
O que me parece mais tocante nesta história é que Tiago Fonseca e Sara Goulart se recusam a ser pessoas demasiados satisfeitas com a tranquilidade das suas vidas. Não deixam que a solidariedade entre também em quarentena. Colocam o melhor de si neste momento de excepção. Tal como eles, julgo que muitos de nós temos a mente demasiado alerta à novidade das coisas. Um estremecimento de expectativas, uma ansiedade por descobrir um novo mundo que se está a abrir para todos nós. Isto não é esperar que a normalidade regresse. Isto é viver em ponto de exclamação.
Alguma coisa boa nascerá daqui.