Um mata-borrão, utilizado noutros tempos pelos escritores e ainda hoje nas artes gráficas, tem uma função essencial: absorver os enganos, de forma a limpar, ou pelo menos disfarçar, uma situação desastrosa. Os mata-borrões valem ouro na hora de camuflar disparates e podem salvar a obra.
A alcunha que Marcelo Rebelo de Sousa colocou a António Costa foi certeira. Com a sua habilidade e experiência política, e com a autoridade reforçada pela maioria absoluta conseguida em janeiro, o primeiro-ministro tem conseguido sugar as sucessivas crises, casos e polémicas em que o seu governo tem estado envolvido, desde a tomada de posse, a 30 de março. Mas mesmo os melhores mata-borrões gastam-se – perdem a força e a capacidade de absorção. E há borrões, de tão evidentes, que não são passíveis de ser camuflados. São, simplesmente, uma nódoa.
A demissão de Marta Temido foi uma dessas manchas – o culminar de um período horribilis de cinco meses para o Governo. Fazia-se adivinhar há vários meses, ficou clara pelo menos desde o debate de política geral a 30 de junho, no Parlamento. O tom de António Costa não foi o de um primeiro-ministro com confiança absoluta na ministra, mas apenas o de alguém que está, taticamente, a tentar gerir a crise num executivo desfocado, descoordenado e com muitos fogos para apagar.
A situação na Saúde, como aqui escrevi, era uma tragédia anunciada. E era anunciada porque Marta Temido nunca percebeu que a estratégia que usou durante a imprevisibilidade da crise pandémica – pedir mais um esforço sobre-humano às equipas e contar com a tolerância dos portugueses para com as falhas do sistema – de nada lhe valeria no rescaldo e no regresso à normalidade. Saiu-se bem na gestão de crise, mas falhou na gestão do regresso ao dia a dia. E nunca percebeu que o novo estado de coisas era mais complicado do que o “velho normal”, com as equipas esgotadas e, sobretudo, sem perspetivas de melhoria de carreira e de condições. O SNS está em agonia, e Marta Temido, toldada por dogmas ideológicos e boas intenções, não conseguiu ver isso. A morte da grávida transferida de Santa Maria, num quadro de pré-eclâmpsia grave – depois de os enfermeiros de neonatologia do maior hospital do País terem pedido, no início de agosto, escusa de responsabilidade por falta de condições naquele serviço –, foi apenas a última gota de tinta que aterrou num papel já ensopado de polémicas e descoordenações na prestação de cuidados médicos urgentes.
António Costa terá percebido que não havia mais como segurar uma ministra caída em desgraça, que já tinha sido, em tempos, a mais popular do governo e até incluída na lista de possíveis sucessores do secretário-geral do partido. E entendeu que, deixando-a sair, cortava um mal pela raiz e acalmava os ânimos dos que pediam responsabilidades políticas.
Porém, deitada fora a página deste borrão, os problemas na máquina continuam. A sucessão de casos em áreas-chave, desde início de abril, de um Governo que nunca viveu estado de graça é esclarecedora: foi o imbróglio Pedro Nuno Santos e o anúncio falhado do aeroporto; foi a polémica da contratação de Sérgio Figueiredo por Fernando Medina; foi a enorme área ardida, com mais de 1% do território consumido pelos fogos, neste verão; foi a revolta do Porto no dossier da descentralização; foram as declarações infelizes da ministra da Agricultura a confundir Estado e partido; foi a transferência dos Gabinetes da Europol e Interpol da Polícia Judiciária para o Sistema de Segurança Interna, na tutela do primeiro-ministro, pondo em causa a separação de poderes; foram as ausências permanentes de Costa, chamado a resolver questões europeias.
A descoordenação, atenuada pelo conforto dos resultados eleitorais, começa a ser demasiado gritante e demasiado insustentável, mesmo dentro do Partido Socialista. E o Presidente da República foi dando sinais, durante o verão, de que está atento e não deixará passar tudo. Cabe agora a António Costa, na rentrée, provar que é mais do que um mata-borrão e fazer o que se espera de um primeiro-ministro: pôr ordem na casa e evitar mais conspurcações e asneiras. Não há maioria absoluta que valha se os erros se sucederem a esta velocidade.