Vamos supor que alguém, seja ou não titular de um cargo público, apresenta, subitamente, sinais exteriores de riqueza muito fora do seu padrão normal. Valores incomportáveis para os rendimentos que declara, sem qualquer justificação pública para tal. O que deve, em teoria, o Estado fazer perante isso? Obrigar a provar a proveniência legal desse património e, se o cidadão não conseguir justificar, condená-lo? Ou investigar e reunir provas de que existem ilegalidades naquele acréscimo patrimonial e, se o Estado não conseguir, absolvê-lo? Entre as duas opções, com a inversão do ónus da prova, vai mais do que um mar jurídico de diferença: é todo um olhar distinto sobre o que devem ser o contrato social, a magnitude dos poderes públicos e a interferência possível do Estado na esfera privada dos cidadãos.
Se a razão de fundo que o justifica é meritória e necessária – combater eficazmente a corrupção –, legislar sobre o tema do enriquecimento ilícito é altamente complexo. Tem muitas nuances que mexem diretamente com direitos, liberdades e garantias e amplificam os poderes do Estado perante o cidadão comum. Se bem usado, pode ser um instrumento auxiliar fundamental para se fazer Justiça. Se mal usado, pode ser a porta aberta para abusos totalitaristas que não são dignos de um Estado de direito democrático.
Não é, pois, de estranhar que há mais de uma década que se tenta criminalizar o enriquecimento ilícito ou injustificado – são coisas distintas –, sem se conseguir. Por duas vezes, o Parlamento aprovou diplomas sobre o assunto que esbarraram no Tribunal Constitucional. Em 2012, a lei foi aprovada por PSD, CDS, BE e PCP, em 2015, por PSD e CDS, em cima do escândalo do caso Sócrates. Sempre sem o acordo dos socialistas, manifestamente pouco interessados em levar este tema adiante. E, por duas vezes, o Tribunal Constitucional avaliou preventivamente e optou por chumbar os diplomas, por considerar que violavam os princípios constitucionais da presunção da inocência e da determinabilidade do tipo legal.
Sempre que há um sobressalto nacional acerca da incapacidade de a Justiça atuar e provar de forma eficaz a corrupção, o tema volta à ribalta. E este é precisamente o momento em que não faz sentido falar dele: em cima de um caso concreto e debaixo da canícula de uma opinião pública inflamada.
O timing é péssimo, e o Presidente da República ainda deitou mais achas para a fogueira, pronunciando-se – qual professor de Direito Constitucional – a favor da existência de alternativas possíveis conformes à Constituição. Ficou o recado enviado: procurem soluções. E o Bloco de Esquerda não o deixará escapar.
Acredita que desta vez não há razões para que o Parlamento não consiga aprovar uma lei previdente sobre o tema. E pensa seguir as propostas da Associação Sindical dos Juízes, que defendem a criação de um crime de ocultação de riqueza ou património adquirido para pessoas no exercício de cargos públicos. Esta alteração legal levaria a que políticos ou magistrados, que já hoje têm de declarar o seu património, passem a ser também obrigados a justificar os aumentos patrimoniais acima de um determinado montante. O PSD e o CDS estão também dispostos a voltar ao tema, e o Chega vai, com certeza, cavalgar o filão populista.
Seja qual for o caminho, equilíbrio e prudência precisam-se. O tema é sensível, e os equilíbrios são frágeis. Tal como no sigilo bancário e nos acessos aos dados pessoais, estas são matérias no fio da navalha da defesa das liberdades dos cidadãos. Mais vale ponderar e fazer uma boa lei do que legislar à pressa uma má lei.
(Opinião publicada na VISÃO 1468 de 22 de abril)