Cresci a pensar que a discussão do lugar das mulheres nas empresas e na política nos países desenvolvidos era coisa anacrónica. Uma luta de outros tempos, que felizmente passaria ao lado das afortunadas mulheres da minha geração – nós que chegámos à idade adulta com todos os direitos de cidadania adquiridos. Somos mulheres, e então? Vamos até onde quisermos e tivermos talento e competência para ir, ponto final. Depois bati com a cabeça e acordei.
Ou melhor, não foi propriamente uma revelação, mas aquele desfazer de ideias feitas (a quem alguns chamam sabedoria) que a idade nos traz. Bastou começar a trabalhar e a olhar à minha volta para perceber o tristemente óbvio. Seja nas empresas, na política ou na vida pública extra afazeres tradicionalmente femininos, a realidade é uma treta: ter um x ou um y inscrito no cromossoma ainda faz arrancar de lugar bastante bem diferente na casa da partida.
É por isso que hoje é um dia bom. Pouco importa a ideologia, o estilo ou as causas de Assunção Cristas – hoje é um dia bom para todas as mulheres. Cristas vem juntar-se a Catarina, no outro lado do espetro, e assim, pela primeira vez, temos duas mulheres líderes entre os principais partidos. É triste que hoje seja um histórico, mas é.
Mais uma vez, assalta-me um artigo de referência que li vai para quatro anos na Atlantic. Nem precisei de googlar, porque nunca mais esqueci o título: “porque as mulheres ainda não podem ter tudo”. Não foi um machista empedernido que o escreveu, mas Anne-Marie Slaughter, uma mulher de rara inteligência que se destacou na política norte-americana como Diretora de Planeamento e braço direito de Hillary Clinton quando esta esteve no governo. Neste artigo honesto e contra-corrente, muito politicamente incorreto, Slaughter explicou porque, de um dia para o outro, desistiu com estrondo de uma carreira high profile na política e largou tudo para se dedicar ao marido e ao filho adolescente. Não estava doente ou deprimida, não estava farta do seu trabalho, numa encruzilhada pessoal ou num impasse na carreira – simplesmente já não aguentava mais a gestão insuportável para combinação dos afazeres profissionais em Washington com as necessidades da família que amava. O texto marcou-me mais talvez porque vinha dali: Slaughter era a personificação da carreirista, da feminista convicta que olhava com vago desdém mal disfarçado para as mulheres que não chegavam lá a cima. Só que a vida lá em cima foi demasiado má para ela, como para muitas mulheres que ali chegam.
“É tempo de nos pararmos de enganar”, escreveu ela: “as mulheres que conseguem ser mães e profissionais de topo ou são supermulheres, ricas ou trabalham por conta própria”. Apesar de termos feito incríveis progressos nos salários, educação e prestígio nas últimas décadas, inúmeros estudos mostram que as mulheres são hoje mais infelizes do que as da geração do início da década de 70. Muita coisa precisa de mudar para termos, de facto, igualdade de oportunidades na carreira, argumentava Slaughter.
Certo. O que nos leva de volta a Cristas. Casada e mãe de quatro filhos, já antes tinha ficado para a história da política portuguesa por ter sido a primeira mulher a estar grávida enquanto ministra. Ela que, como li em tempos num texto do Expresso, tem de responder a questões que não são colocadas aos homens. Contava que quando é entrevistada e chegam aos assuntos pessoais, invariavelmente vêm as perguntas: como é que concilia carreira e família? E quem é que fica com as crianças? Achei admirável: de facto, ninguém se lembraria de perguntar a qualquer homem em funções políticas quem estaria a cuidar dos seus filhos.
A maioria das mulheres, mesmo as mais inteligentes, independentes e bem sucedidas estão, ainda hoje, na primeira linha no que toca à vida familiar. São elas que pensam no que meter nas lancheiras no dia seguinte, são elas que cuidam da roupa dos miúdos, são elas que vão às reuniões da escola e aos médicos, são elas que cortam as unhas e tiram os piolhos. Enquanto eles ajudam, elas asseguram. Costumo dizer que quando chegam ao trabalho, elas vão para o segundo turno, depois de já terem despachado as questões domésticas. Talvez porque temos uma (cientificamente) comprovada vantagem para o multitask, fazemo-lo porque o fazemos melhor do que eles, mas também porque fomos educadas a pensar que temos de ser nós a assegurar tudo isso. Como dizia Slaughter, quando falhamos, tendemos a culpabilizar-nos, coisa que raramente se passa na cabeça de um homem comum.
Não é pois coincidência que Cristas, que sempre se apresentou como mãe de família (ao contrário de Catarina Martins que tem duas filhas mas nunca fez bandeira disso), tenha hoje definido como prioridade a “organização do tempo da vida ativa, com paragens ao longo da carreira e conciliação entre trabalho e família”. Esta é uma causa com que muitos de nós, mas na maioria, muitas de nós, nos revimos. E é, digo eu, uma estratégia que pode dar frutos. Muita gente se identifica com esta história – a da mulher trabalhadora e lutadora, que quer ir longe sem descurar da família.
Espero que tenha mais sorte do que Slaughter. Ou arte. Hoje, je suis Cristas.