Querida avó,
Tu, que agora és mais jagoza do que alfacinha, passas tanto tempo sem vir a Lisboa que, quando vens, está tudo mudado!
Já deste conta que o Monumental já não é o que era? Foi tudo remodelado. Dizem que vai ser mais um …Hotel.
Lembro-me tão bem de ouvir o Varela Silva (havemos de falar dele no nosso “Diário”), dizer “Não tem ontem!” – quando se referia a pessoas sem conhecimento do passado.
Realmente, “não tenho ontem” em relação ao Teatro Monumental. Recordo-me do edifício, e da polémica quando este foi demolido para dar lugar a um Centro Comercial.
O edifício, que era uma das mais belas salas de Teatro de Lisboa, deu lugar a um edifício de vidro para comércio e escritórios. Enfim!
Mas não é o Monumental que venho aqui recordar, mas sim João Manuel Serra, aquele que ficou conhecido pelo “Senhor do Adeus”.
Recordo-me perfeitamente de passar no Saldanha, e todas as noites lá estava o “Senhor do Adeus” a acenar a todos os que passavam de carro. Sempre com um sorriso no rosto e impecavelmente vestido.
Não era uma figura pública, no entanto todos o conheciam e, acima de tudo, todos o adoravam.
Muitos chamavam-lhe louco mas, na verdade, tentava apenas combater a solidão.
Uma vez li uma entrevista dele em que dizia: “Essa senhora [a solidão] é uma malvada, que me persegue por entre as paredes vazias da casa. Para lhe escapar, venho para aqui. Acenar é a minha forma de comunicar, de me sentir gente.”
Nasceu perto da tua casa, num palacete da família . Aqui está uma prova de que a solidão não tem a ver com classes sociais.
Se fosse vivo, faria esta semana 90 anos. Penso que preferia ser conhecido pelo “Senhor do Olá”, mas foi, e será, conhecido como “Senhor do Adeus”.
Posso não “ter ontem” para umas coisas mas tenho para outras. Já tu precisavas de várias páginas para recordar o Monumental, o João Manuel Serra, que provavelmente conhecias perfeitamente, e muito mais.
Bjs
Querido neto
Antes de mais, nunca acreditei que o Monumental fosse abaixo. Lembrava-me de ter lá ido logo na inauguração do cinema, ver o filme O Facho e a Flecha, com o Burt Lancaster e a Virginia Mayo.
E, no último dia em que ele esteve de portas abertas, eu mandei um cartão aos donos:
“Fui ao Facho, vou ao fecho.”
Muito simpaticamente, responderam-me, dizendo que ia reabrir assim que as obras estivessem prontas, e que eu tinha um bilhete em meu nome na bilheteira para assistir à estreia.
Ainda hoje estou à espera.
E fez-me tanta falta…Em frente ficava o café “Paulistana” (agora engolido por outro Centro Comercial), frequentado por todos os atores, e eu adorava estar com eles…
Mas vamos lá mudar de assunto.
Claro que me lembro do ”Senhor do Adeus”. Mas não fez parte das minhas amizades. Disse-lhe adeus para aí uma meia dúzia de vezes e pouco mais.
Dessas pessoas míticas de Lisboa a única que vem logo à minha cabeça é o Catitinha. O Catitinha era um velho enorme, vestido de preto, que andava sempre com uma data de crianças pela mão—e um apito, para que o trânsito parasse quando ele e os miúdos atravessassem a rua.
Dizia-se que lhe tinha morrido uma filha atropelada e por isso ele ficara assim. Ia de casa em casa buscar crianças e ia com elas passear, normalmente para o Parque Eduardo VII.
Trazia com ele um álbum de retratos de miúdos que já tinham andado ou ainda andavam com ele.
Lembro-me de ele chegar a minha casa e a criada dizer à minha tia:
“Está aqui o sr. Catitinha.”
Ele entrava, almoçava connosco e depois pegava em mim e levava-me para o Parque—e ensinava-me o nome das plantas, das árvores, e como era bom comer azedas. E nunca tínhamos hora de regressar.
Ainda hoje não entendo como é que a minha tia, que mandava em todos com mão de ferro, que nunca me deixava sair de casa nem sequer brincar com outros miúdos—me abandonava a tarde inteira nas mãos do Catitinha!
Mas garanto-te que foi o melhor tempo da minha infância.
Bjs e boa semana
O Diário de uma Avó e de um Neto é um projeto do site Retratos Contados
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