O oxigénio esgota-se no planeta das artes. Ao fim de cinco meses a pão e água, os profissionais da cultura vivem como gatos no deserto. Artistas, produtores, técnicos e todo um universo de actividades associadas – ou seja, dezenas de milhares de pessoas – sobrevivem como leopardos à caça, vestindo a pele do maestro Victorino d’Almeida quando disse há tempo que era assim que se sentia: com 74 anos e uma reforma de 288 euros, forçado a sair para caçar todos os dias.
Assim tratava a troika um homem cujo contributo para o país é inestimável, o de toda uma vida dedicada a elevar Portugal. Nunca me vou esquecer dessa entrevista. Hoje, temos um sector inteiro nesta situação. Leopardos magros, cada vez mais magros, a caçar moscas. Há reformas estruturais para fazer ao nível da política cultural, pois claro, medidas urgentes de apoio social a tomar para ontem, mas, a par com isto, é tempo de ter coragem para acabar com o afogamento covidiano do sector. Não se pode pedir a uma classe profissional que continue a passar fome. Se os apoios não chegam, nem vão bastar, deixem-nos ao menos trabalhar, por favor.
Não se deixem enganar pelo título. Não gosto de linchamentos públicos, nem de bater em pessoas que já estão debaixo de fogo. Já aqui escrevi sobre as reformas urgentes, a curtíssima resposta do ministério da cultura, a miséria do sector. Ainda assim, convenhamos que é especialmente irresistível brincar com o drinque da tarde da ministra, numa semana em que, aos bares e discotecas, se sugeriu que funcionassem como cafés ou pastelarias. Melhor ainda: governo autoriza discotecas e bares a reabrir, sim senhora, desde que fechem às oito e não tenham pista de dança. Por outras palavras, discotecas e bares têm licença para abrir desde que não sejam discotecas e bares. Não fosse letal a amargura instalada e isto teria um piadão.
Na semana em que o drinque da tarde foi #trend, não é de menosprezar a consistência de um executivo que, nem nas discotecas, permite drinques depois das oito. A lei dita que tomemos o matabicho com o café matinal, seguido do cocktail à tardinha, mas não mais do que isso. O que acontece depois das oito está suspenso como se não houvesse dezenas de milhares de vidas, em grande parte ligadas à cultura, dependentes daquilo que acontece depois das oito. O que acontece depois das oito está suspenso como se à noite todos os gatos fossem parvos.
A pandemia veio virar as vidas todas do avesso. Fala-se de uma crise sem precedentes. Aqui, a cultura é uma vez mais uma excepção, cheia de precedentes. A crise é historicamente uma espécie de status quo no meio artístico e o vírus veio só dar mais uma machadada – quiçá a última se não fizermos nada. No fundo, pode resumir-se a isto, como li algures: os espaços culturais foram os primeiros a fechar e serão os últimos a abrir. Se é verdade que a cultura é, por excelência, a comunhão de pessoas e o vírus o proíbe, não deixa, de qualquer modo, de ser simbólico que os centros comerciais tenham reaberto primeiro e com menos limites. Mais depressa se cancela uma Feira do Livro do que se fecha o Norteshopping. São prioridades, mas nada disto é novo.
Uma passagem rápida pelos compêndios de História da Arte dá ao mais desatento leitor a certeza de que a cultura nunca experimentou uma época das vacas gordas. Isto nem sequer no país em que até a compra de jipes com dinheiros europeus conheceu uma fase de opulência bovina. Há registo de períodos melhores, mas sempre tão aquém. Não dando jamais ouvidos aos poetas, os sucessivos governos têm vindo a dar fundamento à ideia romântica de que a arte e a fome têm uma relação pretensa. Neste momento, há duas grandes fomes: a imediata, sofrida pelos profissionais da cultura impedidos de trabalhar, e a universal, num momento-chave onde nada como as artes teria o poder de trazer à tona um povo mergulhado na depressão e frustração, em colapso emocional. E no entanto, não se permite.
Está na altura de praticar o que sabemos há milénios. Como espécie, sabemos que as artes, a criação, a expressão e a partilha são essenciais à saúde das sociedades, funcionando como partida e chegada de uma esfera intrínseca e fundamental à existência humana, motor da elevação, do progresso e da beleza, sem o qual seriamos ovelhinhas a pastar. Aqui, não se percebe nem se admite que quem luta por esta área de interesse público ainda perca tempo a explicar, em 2020, a relevância do seu trabalho, mas a verdade é que acontece. Começa a não haver paciência. A política cultural nacional parece continuar a exigir aos profissionais que afirmem a sua importância, pelo modo como aparenta dar-lhes pouca.
Neste plano, bastava seriedade, um reforço do investimento público na área e a revisão do estatuto laboral dos trabalhadores artísticos para mudar bastante o panorama, de acordo com o que o CENA-STE, a Plateia e a APR apresentaram ao governo. Já no actual cenário de catástrofe, o estrangulamento aperta. Compreendemos que inicialmente suspendessem tudo o que junta pessoas. Hoje, com o que já se sabe sobre o vírus, começa a ser inaceitável impedir as pessoas de trabalhar.
Não é uma questão óbvia, nem tem uma resposta fácil. O planeta cultura-e-artes tem particularidades internas e no quadro da pandemia. Precisamos, como é evidente, de uma acção rápida, já tardia, ao nível do apoio social – e à data da publicação desta crónica abrem três linhas extraordinárias para profissionais do ramo -, de reformas profundas na governação do sector como as já mencionadas, porém, para já, não seria mau darmos às pessoas a chance de sobreviver. Os drinques da tarde não pagam contas.