Este regresso ao normal é anormal. Ao fim de três meses, reencontramo-nos de cotovelo estendido, impedidos de nos abraçarmos nas praças sem tuk-tuks, ouvimos histórias de vidas trocadas e esboçamos sorrisos por detrás da máscara. Estranho fado, este de esbarrar o sorriso numa película de algodão. No limbo entre a realidade e a distopia, ensaiamos rotinas de queixo erguido, porém com a vaga sensação de que a saga do vírus não vai sequer a meio. Três toques na madeira. As pessoas estão tensas, a economia cheira a esturro e o futuro demanda uma força colossal para lidarmos com os problemas que aí vêm. Felizmente, nenhum desses problemas é o racismo – que não existe.
Nem sempre percebemos bem o que leva um caso a tornar-se simbólico. Infelizmente, o assassinato de George Floyd pela polícia americana não se destaca por ser único, mas muito pelo contrário. “O racismo não está a ficar pior, está a ser filmado”, lançou o actor Will Smith. A onda de indignação e revolta ferveu nos Estados Unidos da América e transbordou para o globo, perante o choque das imagens do homicídio de um homem negro por um polícia impávido, em plena luz do dia e à frente de outros três colegas seus, que nada fizeram. Foi este o trabalho de quatro “agentes de segurança”. Um pouco por todo o planeta, mobilizam-se manifestos em memória de Floyd, condenando a cultura da violência policial e um facto óbvio, tão óbvio, comprovado por tantas estatísticas, em tantos locais do mundo, que até é bizarro termos de o deixar por escrito: em 2020, a vida ainda é mais difícil e violenta para quem não tem a pele branca. Reconhecer isto não implica dizer que a vida não é difícil para todos – que é – mas sim que, para alguns, é ainda mais dura graças ao tom da sua pele. Mas o que fará com que este facto seja tão claro para uns e tão questionável para outros? Mais do que insultar quem ainda não percebeu a diferença, proponho que falemos sobre o assunto.
Sempre que um caso deste tipo nos abala, surge um coro de vozes aparentemente empenhadas em secundarizar os factos: ou porque o escândalo ganha destaque perante outros crimes congéneres – “porque é que se fala de Floyd e não se fala dos homicídios nos bairros?” -, ou porque vem do estrangeiro – “Portugal não é na América, que sentido faz que haja manifestações aqui?”, ou porque há quem roube lojas na confusão dos protestos ou porque alguém tenta tirar dividendos políticos do momento. Enfim, argumentos não faltam para resistir a alinhar com a indignação e isso é curioso. Todas estas perguntas fazem sentido, mas o que levará alguém a ter necessidade de as levantar, como se desviassem a importância do acontecimento? É suposto acreditar que uma coisa invalida as outras? O que levará tantos a vir dizer que “não temos a certeza de que foi racismo”, que “ninguém sabe o que é estar na pele de um polícia”, ou que “todas as vidas importam” (All lives matter)? O que custará aceitar um problema evidente, absolutamente gritante, para que possamos unir esforços para o resolver? O que levará, por exemplo, um totó a escrever no Twitter que só prestará atenção a Floyd quando dermos o mesmo destaque a um caso português? De onde virá esta motivação para relativizar, para dividir as pessoas, para fugir à questão em vez de nos sentarmos para a discutir?
Comecemos por constatar o óbvio: estas manifestações ultrapassam a morte de Floyd, apesar de serem catapultadas por ela. O desgoverno de Trump, a sua resposta criminosa à pandemia, o agravamento económico e a incomportável acumulação de atentados contra os direitos humanos estão na base destes protestos. Trump é líder de um processo global de desumanização e um símbolo da nova vaga de populismos, da política da mentira, da mediocridade elevada ao cúmulo, da instituição do ódio e da escalada das desigualdades. Tristemente, nada disto se confina à terra do tio Sam. O discurso de ódio é um problema mundial. A violência policial é um problema mundial. O racismo é um problema mundial. Nada disto foi inventado por Trump, mas tudo isto foi amplificado por Trump, sendo simbolizado pela pessoa de Trump, e cada novo ditadorzeco à face da Terra é seu aprendiz. Não é surpresa que a revolta ultrapasse fronteiras. Não será normal que as pessoas exijam humanidade e justiça? Estes problemas não existem ou não são relevantes? Eis a questão.
“Privilégio branco é ter a certeza de que nenhuma dificuldade enfrentada na sua vida teve a ver com a cor da sua pele”, li algures. Eu, por exemplo, tenho esta certeza. De caras. Assumir que esta diferença é real (e que não é um pormenor) é o primeiro passo na luta pela justiça e não custa nada, garanto. Encarar a realidade de que a cor da pele ainda atrapalha a vida no séc. XXI também não retira nada a ninguém, garanto, muito pelo contrário. Aqui, trata-se apenas de não viver em negação, nem de fingir que a discriminação racial é uma espécie de Pai Natal, na qual se pode acreditar ou não. Muita gente reconhece o problema, vénias para essas pessoas, mas ainda há demasiadas almas confusas. Ao mesmo tempo também é fundamental que, quem já o reconhece, vista a causa e se mobilize por uma sociedade igualitária. E aqui entra outra questão importante: vestir a causa não é chamar “Racista!” a toda a gente ao mínimo gesto, gritando “racismo!” como o Pedro gritou “Lobo!”. Agir assim não é só injusto, mas contraproducente. Vestir a causa é criar reflexão sobre o assunto, discuti-la a fundo e separar as águas. É essencial que nos unamos neste ponto: é tão atroz dizer que os portugueses são todos racistas como dizer que não existe racismo em Portugal. No caso da violência policial, por exemplo, há um padrão: em Portugal, nenhum polícia foi condenado por racismo em dez anos. Nenhum único polícia. Estarei, ao sublinhar este fenómeno, a dar a entender que os polícias são todos racistas? Obviamente que não. Mas alguém acredita que, depois de tudo o que já vimos e vivemos, não exista um caso de racismo na polícia? Concluo: ter a coragem de assumir com clareza que as maçãs podres existem é a única via ao nosso alcance para abrir caminho entre o trigo e o joio, em direção à mudança. O racismo tem de ser punido com intransigência, e o debate que o circunda tem de ser consciente e cuidadoso. É preciso educar, mais do que tudo.
O mundo pede justiça e os assassinos de Floyd estão acusados. O execrável governo de Trump pode estar a chegar ao fim. Na Internet, circulam vídeos brutais, no mau sentido, de polícias a atacar manifestantes e vídeos brutais, no bom sentido, de esquadras inteiras a juntarem-se aos protestos, unidos, solidários com a causa maior. É cada vez mais evidente: cada um decide de que lado da história quer ficar. Sem cairmos em lirismos, este é um arco-íris no qual podemos acreditar.
Crónicas d.C.
Há um mundo antes, durante e depois do novo corona vírus. A comunidade organiza-se, a sociedade reinventa-se e a economia treme. Entre manifestações comoventes de humanismo e vestígios desoladores de um certo “salve-se quem puder”, tudo parece indicar que testemunhamos um momento histórico com poder para reformular o modo como vivemos. É, portanto, tempo de observar, antecipar e repensar a realidade d.C (depois de Corona), no sentido de garantir que saímos desta crise para um mundo melhor.