Crónicas d.C.
Há um mundo antes, durante e depois do novo corona vírus. A comunidade organiza-se, a sociedade reinventa-se e a economia treme. Entre manifestações comoventes de humanismo e vestígios desoladores de um certo “salve-se quem puder”, tudo parece indicar que testemunhamos um momento histórico com poder para reformular o modo como vivemos. É, portanto, tempo de observar, antecipar e repensar a realidade d.C (depois de Corona), no sentido de garantir que saímos desta crise para um mundo melhor.
O globalismo passou de moda ou, pelo menos, parece que sim. De fronteiras fechadas, assistimos à generalização de um discurso que agradaria a dois grupos diametralmente opostos: “preferir o que é nosso”. Comprar produtos locais, tentando não ir buscar de avião um tomate se o podemos plantar na varanda, faz tanto sentido para um ambientalista como para um nacionalista fanático. Depois de séculos de globalização, há quem defenda que o processo pode estar a ser revertido com a ajuda de um vírus que nos fechou em copas. Ninguém acredita que poderemos cultivar mangas na Serra da Estrela ou pescar salmões no Jardim da mesma, contudo a saída para a crise ambiental e a recuperação económica justa podem passar pela valorização não-chauvinista do local em relação ao global.
O coronavírus é o segundo colosso planetário no espaço de uma década. Em 2008, a crise do subprime eclodiu nos Estados Unidos e mundializou a falência, a fome e a miséria como uma peça de dominó que deslizou. “Ups!” Para vários economistas, esse momento expôs a fragilidade de um sistema planetário erguido sobre um castelo de cartas: um circuito tão interdependente e desprotegido que, se uma potência do outro lado do globo adoece, adoecemos todos. Faz soar uma campainha, não faz? Em 2020, a segunda crise na vida das crianças de 10 anos, que ainda não sabem o que é uma crise e já passaram por duas, vem, para Walden Bello, sociólogo e professor na State University de Nova Iorque, chamar a atenção para o que já devia ter sido feito: equilibrar o tabuleiro do jogo. A globalização é um processo secular que permitiu o florescimento das sociedades cosmopolitas, o progresso económico e tecnológico, sem o qual jamais viveríamos como vivemos, e querer bloqueá-lo ou negar as suas virtudes é tão mentecapto quanto irrealista. Estamos demasiado ligados para que isso seja desejável e possível. Em Portugal, aliás, sabemos bem que o fantasma do isolacionismo é de meter medo ao susto. Todavia, será absurdo encolhermos os ombros perante um sistema mundial que colapsa desta maneira, que perpetua desigualdades económicas e que está, garante a comunidade científica, a acabar com o planeta. A produção industrial irresponsável e o consumo desenfreado estão ligados a uma cadeia de distribuição que é também uma cadeia de destruição. Dúvidas? Tomemos o exemplo de uma marca de sapatos: uma empresa norte-americana desloca-se para Taiwan, instala uma fábrica, compra materiais à China, outros ao Bangladesh, para exportar para a Europa e acaba a vender em Portugal, imagine-se, numa loja em Évora. Que sentido faz isto? Quando nos chegam aos pés, os ténis novos já caminharam 800 vezes até Fátima. Se sabemos que cada quilómetro sai caro ao planeta, qual é a lógica de andarmos a passear de avião, de camião, de barco, a queimar combustíveis fósseis, com estes ténis de um lado para o outro, ou com cada objectozinho que temos à nossa volta? Será tudo para que as multinacionais poupem umas coroas em impostos? Nos últimos meses, os governantes disseram-nos para comprarmos produtos nacionais e ninguém passou fome por isso, ao que parece. Ao que parece. Nada disto é uma resposta absoluta, nem um modelo simplex, mas seria de desejar que cada país e cada região criassem estratégias locais para a mudança global.
Ao mesmo tempo, falar de desglobalização é particularmente delicado hoje. Num contexto internacional onde a extrema-direita ganha terreno, vários são os líderes a aproveitar-se da pobre ignorância dos povos para resgatar o pior das lógicas nacionalistas. Do “Make America Great Again” de Trump ao “Take Back Control” que levou o Reino Unido ao Brexit, muitos são os mantras de quem se aproveita para atear as populações na direção da desumanidade. Na Europa, o panorama é negro perante a emergência de líderes autoritários que prometem devolver ao seu país a suposta grandeza de outros tempos. Devolver. No mínimo, é curioso reparar em como, independentemente dos slogans, todos assumem uma lógica de “trazer de volta” o passado glorioso, o passado em que havia riqueza ou o passado em que havia segurança. No fundo, é a capitalização da má memória, da nostalgia e do desespero. Neste contexto, o que é nacional é bom, o que é nacionalista é péssimo.
Distinguir estes dois discursos é fundamental: o pensamento regional, o desenvolvimento local e o encurtamento dos circuitos de distribuição tem a ecologia, a coesão social e a redução das desigualdades no horizonte. Nada disso tem a ver com a jangada bafienta do chauvinismo, do racismo e da xenofobia, que alega ser nacional mas não é mais que nacionalista. Nessa triste jangada, a embalagem é nacional mas os discursos são importados como as botas, estandardizados, papagueados por cada neopopulista a subir nas sondagens. É irónico que quem mais grita pela identidade nacional seja quem mais se cola à retórica fabricada no estrangeiro. Como fica claro, procurar cultivar mais independência regional está a milhas disto. Se a vida nos dá limões, que dê limões aqui da zona. Preferir produtos locais à importação insustentável aponta a construção de um sistema mundial mais forte, mais limpo e mais justo. Esperamos que a moda persista para além da pandemia, acompanhada de políticas e estratégias que a promovam.
Ao contrário do que o título da crónica pode indicar, não se trata aqui de negar as maravilhas do cosmos ao virar da esquina, que é uma das maiores conquistas humanas, mas de o transformar num sistema menos frágil, menos nocivo e menos injusto.