Crónicas d.C.
Há um mundo antes, durante e depois do novo corona vírus. A comunidade organiza-se, a sociedade reinventa-se e a economia treme. Entre manifestações comoventes de humanismo e vestígios desoladores de um certo “salve-se quem puder”, tudo parece indicar que testemunhamos um momento histórico com poder para reformular o modo como vivemos. É, portanto, tempo de observar, antecipar e repensar a realidade d.C (depois de Corona), no sentido de garantir que saímos desta crise para um mundo melhor.
Numa era remota, antes de Corona, acompanhávamos em programas de televisão o dia-a-dia de pessoas fechadas numa vivenda com piscina. Desse enclausuramento resultavam amores e desamores, paixões e gritarias, romances e traições, escândalos e eliminatórias com um prémio no fim. Em 2020, o reality show foi a nossa vida. A quarentena fez entrar nos nossos lares o melhor e o pior do melodrama, afetando cada habitante deste Big Brother planetário de modo diferente. Muito diferente. Assentado o pó, uns ganharam, outros foram eliminados, em parte graças às pessoas com quem ficaram fechados. A bem ou a mal, avaliámos o insustentável peso dos seres que vivem connosco – ora leve, ora não –, de coração apertado por não podermos trazer para perto os queridos confinados noutras paragens. Sem podermos e sem sabermos até quando.
O isolamento social representou uma prova de fogo para as famílias. Comecemos por dentro de casa: da noite para o dia, passámos a estar 24 horas com quem partilha o teto connosco. Quer vivamos sozinhos, com amigos, em parelha ou com os irmãos Von Trapp, ninguém, ou quase ninguém, passa a vida confinado num ambiente fechado com as mesmas pessoas. Viver em sistema fechado é, em si, desafiante para a saúde mental, garantem os psicólogos, pois precisamos todos de ar, exterior, novidade e privacidade. Na lufa-lufa contemporânea, é raro termos tempo para quem vive connosco e tê-lo uma vez na vida pode ter sido óptimo para muitos, mas também há para quem o choque tenha sido violento. Se, para uns, a quarentena foi um ciclo romântico que permitiu aos pais atarefados conhecerem melhor os filhos ou levou casais a experimentar segundas luas de mel – a quarentena Disney – há gente para quem o isolamento não foi um mar de rosas, séries e receitas de pão caseiro, tendo antes ateado fogo a problemas graves. O pânico, a falta de espaço pessoal, a obsessão com a doença, a exaltação dos ânimos, a acidez do medo, a falta de condições em casa e o desastre financeiro deixaram vários lares em maus lençóis. Mais uma vez, fica claro que não, não estamos todos no mesmo barco. Demasiadas famílias foram obrigadas a permanecer em casas precárias, a viver em conflito e a equilibrar o desequilíbrio em cenários de desemprego, fome, violência doméstica e ansiedade aguda. Noutros casos, o isolamento compulsivo levou os mais frágeis ao abismo. A violência do afastamento e o discurso apocalíptico, sem tréguas e com laivos de fanatismo, fez vítimas entre os mais velhos e solitários. Muita gente perdeu pessoas sem poder despedir-se delas, não graças à doença mas à violência da cura. É triste. O #fiqueemcasa foi bonito para quem tem o mínimo e muitos não o tiveram. É essencial que fique claro. Todos sofremos com a pandemia, cada um à sua maneira, mas há sempre quem, mesmo assim, tenha mais sorte. Quem tem uma casa boa, saúde, rendimento fixo e os melhores a seu lado está no lado luminoso do enredo. Quem não perdeu ninguém no silêncio da catástrofe está no lado luminoso do enredo. Nesse lado luminoso, há histórias lindas de agregados e famílias que se aproximaram, entrelaçando rotinas como tranças loiras. Nesse lado luminoso, há comoventes fábulas de avós que, com as saudades ao rubro, se atiraram aos mares do Skype e das tecnologias em naus de madeira, fintando a distância. Também desse lado – onde eu me incluo – está quem poderá dizer, quando o odioso filme acabar, que não foi sempre fácil aturar as manias do namorado, o humor da mãe ou a energia dos filhos, que não foi sempre incrível o teletrabalho, o álcool-gel ou o aniversário solitário, que as saudades foram muitas, oh, sabem lá, mas que, no fundo, se leva uma história para contar. Para muitos, o confinamentofoi chato e foi áspero ma non troppo. Passou-se bem, apesar do stress. Pior será pagar a fatura da crise económica.
Agora que os números da pandemia em Portugal se mostram finalmente animadores – esperamos que assim se mantenham – é central que a empatia subsista para superarmos o que aí vem. O transtorno é mundial, mas há sempre uma maioria silenciosa que sofre mais, longe dos holofotes. A pobreza, a doença e a morte não escrevem nos jornais nem fazem anúncios na televisão. Não produzem textos virais, nem gravam vídeos a fazer bricolage. Quem de facto sofreu na linha da frente vai precisar muito da ajuda de todos para recuperar da calamidade. Pois é. Lá vamos nós outra vez.
Não percam o próximo episódio do Big Virus, porque nós também não.
Crónicas d.C.
Há um mundo antes, durante e depois do novo corona vírus. A comunidade organiza-se, a sociedade reinventa-se e a economia treme. Entre manifestações comoventes de humanismo e vestígios desoladores de um certo “salve-se quem puder”, tudo parece indicar que testemunhamos um momento histórico com poder para reformular o modo como vivemos. É, portanto, tempo de observar, antecipar e repensar a realidade d.C (depois de Corona), no sentido de garantir que saímos desta crise para um mundo melhor.