O que está em jogo nas eleições do próximo domingo no Brasil não é só, e já era tanto, a eleição do Presidente da República, mas a própria democracia, a garantia de respeito pelos direitos humanos e pela mínima qualidade, ou até decência, da vida pública e dos seus protagonistas. Além de muitas outras coisas, como:
1) a preservação/proteção do “pulmão do mundo” que é a Amazónia;
2) a imagem, talvez melhor: a “representação”, de um grande país e da dignidade de um povo;
3) ou, noutro plano, o desenvolvimento de relações e ações quer bilaterais, Brasil – Portugal, quer no âmbito da lusofonia, em particular no domínio do que mais especificamente nos une, o da língua e da cultura.
A esta luz, no plano bilateral, compreendendo as razões de Estado que obrigam a certas condutas dos titulares de órgãos de soberania enquanto tais, julgo excelente António Costa, a título pessoal e como secretário-geral do PS, ter manifestado o seu apoio público à candidatura de Lula da Silva. Como o consideraria se o adversário do atual Presidente, Jair Bolsonaro, não fosse aquele ex-Presidente (que chegou ao fim dos seus dois mandatos com uma aprovação de 83% dos brasileiros), mas um candidato de direita, conservador, reconhecidamente democrata.
São inúmeras as declarações, posições e ações de Bolsonaro, ao longo dos anos, que me levam a considerá-lo entre o insano e o sinistro, carente de equilíbrio, de notória ignorância e insensatez. Basta lembrar o seu “viva” ao torturador de Dilma Rousseff aquando do seu impeachment, e as constantes violações de valores essenciais, os “crimes” éticos e políticos – seus e do “bolsonarismo” – que tanto contribuem para um desgraçado clima de insanável divisão, intolerância, ódio.
Assim, na eleição de domingo, insisto, a grande opção não é entre direita e esquerda, mas entre respeito e desrespeito pela democracia e pelos valores constitucionalmente consagrados no Brasil. Por isso a candidatura de Lula, apesar dos erros e “pecados” passados, seus e do PT, tem hoje a participação e o apoio expresso de organizações e relevantes personalidades de diversíssimas áreas ideológicas, incluindo muitas que foram seus assumidos adversários políticos.
Começando pelo próprio candidato a vice, Geraldo Alckmin, seu opositor também em anteriores presidenciais, e pelo antigo Presidente, talvez quem teve mais disputas com Lula, Fernando Henrique Cardoso: costuma ficar silencioso, ou “em cima do muro”, mas desta vez apoiou-o publicamente. E Simone Tebet, a terceira mais votada nestas presidenciais e sua grande “revelação”: a senadora, de centro-direita, que “ganhou” todos os debates, está a participar de forma ativa na campanha de Lula, incluindo em comícios.
Ou, só meia dúzia de exemplos, que aqui mais não cabe: Joaquim Barbosa, o ex-presidente do Supremo Tribunal Federal, primeiro negro a integrá-lo, figura moral de referência e relator do processo do “mensalão”, que atingiu importantes dirigentes do PT; Marina Silva, a famosa lutadora ambientalista, também três vezes candidata à Presidência (e em duas a terceira mais votada), injustamente atacada pelo PT, um símbolo global na defesa da Amazónia; Henrique Meirelles, que foi presidente do Banco Central, ministro do governo Temer, candidato a Presidente pelo MDB em 2018; praticamente todos os grandes escritores, artistas, cientistas, académicos do Brasil – incluindo o prof., jurista, Miguel Reale Jr., “autor” do pedido de impeachment de Dilma.
Face às sondagens e sua evolução, para mais depois do que aconteceu na 1ª volta, a possibilidade de Jair Bolsonaro vencer no próximo domingo é grande. E por mim, com o Brasil (sempre) no coração, interrogo-me, amargurado: como é possível? Como é possível dezenas de milhões de brasileiros votarem Bolsonaro, incluindo alguns (poucos…) que prezo e tenho por democratas? Como é possível, quando isso me parece ainda mais impensável do que votar em Trump e seus sequazes nos EUA? Em que mundo estamos a viver e o que se pode, deve, tem de fazer para nos desviar deste caminho para o precipício e seguir em frente num mundo livre, digno, justo, decente, com futuro?
À MARGEM
Adriano Moreira
Morreu, com 100 anos, uma figura a vários títulos singular e que em vários campos se distinguiu. Aqui a referi, algumas edições atrás, nomeadamente a propósito da sua ligação ao Brasil e à lusofonia. Hoje, homenageando a sua memória, quero lembrar que ele não hesitou um minuto em aceitar o convite para ser colunista da VISÃO, no Ensaio, durante anos nossa última página. Onde tivemos também outros grandes nomes, como – para falar só de já desaparecidos – Eduardo Lourenço, Mário Soares, José Saramago, Maria de Lourdes Pintasilgo ou Diogo Freitas do Amaral.
Misericórdia
Não costumo falar aqui de livros, embora talvez devesse fazê-lo. Mas hoje chamo a atenção para um, que recomendo vivamente, excecional, muito atual e literariamente original romance de Lídia Jorge, acabado de sair: Misericórdia. No último JL (Jornal de Letras) pode saber muito mais a seu respeito.