Muito provavelmente tratou-se de um mero acaso, e nem António Costa nem Fernando Medina terão dado conta da coincidência. Na semana passada, quando começaram a ser distribuídos os apoios extraordinários para as famílias, celebrou-se também o Dia Internacional para a Erradicação da Pobreza (17 de outubro). Aproveitando a data, na VISÃO, publicámos dados da Pordata revelando que, em Portugal, no primeiro ano da pandemia, em 2020, o número de pessoas em risco de pobreza ou em exclusão social aumentou 12,5%, o que não acontecia desde 2014.
Ter o dia mundial disto e daquilo como pretexto para dar uma notícia é uma velha prática do jornalismo, e, para todos os efeitos, continua a ser um excelente critério editorial para noticiar assuntos de enorme relevância para o País – os quais, bem vistas as coisas, deveriam abrir telejornais todos os dias. Na mesma altura, a diretora da Pordata, Luísa Louro, também chamou a atenção para a importância das transferências sociais na redução destes tristes dados: a viver abaixo do limiar da pobreza (ou seja, 554 euros mensais) existem 4,4 milhões de portugueses, mas, depois das transferências, este valor passa para 1,9 milhões de pessoas.
Tendo isto em conta, não é possível considerar as medidas extraordinárias do Governo uma mera esmola sem grande impacto. Pode até ser difícil de compreender o caráter universal do apoio de 50 euros para todas as crianças, mas 125 euros faz toda a diferença num exíguo orçamento familiar (rendimentos brutos até 2700 euros). É só fazer as contas, como diria António Guterres, o antigo primeiro-ministro que, há mais de 20 anos, teve a coragem de criar o Rendimento Mínimo Garantido. Basta pensar no preço de uma lata de atum ou de uma garrafa de azeite, que estão agora entre os produtos mais roubados das prateleiras dos supermercados. Segundo noticiou o jornal Expresso no fim de semana passado, há um aumento deste tipo de furtos nos últimos meses e já há lojas, sobretudo nos grandes centros urbanos de Lisboa e do Porto, a pôr alarmes em produtos alimentares como conservas, bacalhau e salmão congelado.
De acordo com dados recentes do Eurostat, a pandemia fez com que Portugal subisse de 13º para 8º na lista de países europeus com maior risco de pobreza ou exclusão social. No topo dos mais frágeis, estão os do costume: mulheres, crianças, desempregados, famílias monoparentais. As pessoas não são números, mas os números da pobreza em Portugal são inaceitáveis. Discursos derrotistas sobre países falhados e atribuições de culpas coletivas também nos conduzem a um beco sem saída, e não a um debate sério (e ativo!) sobre o assunto. Não há, porém, como dizê-lo de outra maneira: estes números envergonham-nos a todos.
Não esquecendo nunca os que morreram durante a pandemia de Covid-19 e os que todos os dias deles se recordam com saudade, teimamos em ignorar a pandemia de pobreza que continua a alastrar em Portugal. Do lado do jornalismo, alguma coisa também estará certamente a falhar porque notícias sobre o assunto, como se vê pelas que aqui recordei, é coisa que não falta nos jornais. Falta alguém cometer a tontearia de atirar sopa de tomate para cima dos Painéis de São Vicente?