Com o chumbo do OE e a convocação de eleições, o governo PS, suportado por uma geringonça à esquerda, terminou. É possível que o mesmo cenário se volte a repetir, mas convinha que quem governa não se deixasse enredar por compromissos e ameaças que lhe tolheram os movimentos nesta legislatura e travaram qualquer ideia reformista na área da saúde.
Desde 2016 que a ideia central deste governo foi repor a despesa cortada pelo governo PSD/CDS, na ordem dos mil milhões de euros por ano, só na área da saúde. Os serviços públicos apresentavam listas de espera desmesuradas, muitos hospitais estavam com especialidades sem capacidade de marcação de consultas, muitos doentes não tinham meios para se deslocar para tratamentos e exames (porque lhes tinha sido retirado o apoio), o setor privado alcançou níveis de crescimento nunca vistos, os serviços viram diminuídos os seus efetivos em diferentes domínios, designadamente, na enfermagem, nos meios complementares de diagnóstico e terapêutica, nos assistentes técnicos e nos assistentes operacionais. Este cenário começou logo a ser contrariado pelo então XXI Governo Constitucional, com fortes investimentos em mais profissionais e reposição de valores das horas extraordinárias e dos suplementos em geral. A pressão da geringonça e a evidência de uma realidade depauperada concorreram para esta intervenção determinada. Depois, a pressão dos sindicatos e das ordens conduziu a um corte de 5 horas semanais nos horários das profissões não médicas, em que o governo cedeu em toda a linha naquilo que não devia ter aceitado. De facto, em profissões com trabalho contínuo por turnos, como é o caso, a substancial redução horária, conduziu ao aumento incontornável de efetivos quando ainda se não tinha feito a reposição anterior às exigências da troika. Foi a primeira cedência grave, por mero taticismo político, mas que feriu profundamente a estratégia de melhoria das condições de resposta aos nossos doentes.
Mais à frente, a oposição puramente ideológica aos hospitais em PPP, revelou-se eficaz, com o governo, mais uma vez, e contrariando todos os relatórios e reconhecimento técnico disponível, a ceder à sua esquerda e aceitar acabar com esse modelo. Os resultados, como se esperava, não foram brilhantes, com aumento dos custos e sem ganhos de efetividade. A Lei de Bases da Saúde foi outro momento crítico, em que a troco de nada se fechou o leque de opções na prestação de cuidados, sacrificando a cooperação com o setor privado e social, mais uma vez por opção ideológica.
Defender o SNS não é uma questão meramente ideológica, em que defendemos a propriedade pública dos meios de produção e o emprego público, mas esquecemos as formas de organização e de funcionamento dos serviços. Os partidos mais à esquerda tendem a valorizar sempre aquelas componentes e a desvalorizar estas últimas, o que faz com que se gaste cada vez mais em saúde, mas com resultados sempre insuficientes e pouco satisfatórios para os portugueses. Defender o SNS passa, assim, por uma reflexão séria e profunda sobre a forma como está organizado, como funciona e que resultados entrega aos doentes e à população em geral. Pôr mais recursos na equação pode dar conforto ideológico e pacificar os interesses de quem trabalha no setor, mas não é seguramente um bom serviço prestado aos beneficiários finais, os doentes.
Importa, por isso, concretizar áreas em que o próximo governo – que espero que defenda o SNS – terá que iniciar um processo de reformas. Como se imaginará, mudanças mais sistematizadas e profundas, exigem novos compromissos entre os diferentes players, dos profissionais, aos doentes, dos fornecedores aos financiadores, do governo às ordens e aos sindicatos, dos prestadores públicos aos prestadores privados. E os interesses de cada uma das partes deverão acomodar-se, por uma vez, ao interesse geral:
- Novas carreiras públicas no SNS
O SNS deverá ter carreiras próprias, não sendo aconselhável a aplicação de uma visão transversal das carreiras da função pública a um setor particularmente sensível e exigente como é cuidar da saúde das pessoas. A formação, o recrutamento, os princípios de avaliação, as métricas de desempenho e as remunerações, devem promover a dedicação ao posto de trabalho, a qualidade e a idoneidade do que se realiza, o mérito reconhecido pelos doentes e pelos superiores hierárquicos. Não haverá lugar a um trabalho em part- time, desmobilizador dos nossos melhores quadros que vêm no setor privado a solução para progredir económica e socialmente. As carreiras não podem continuar a ser uma escalada burocrática, em que a antiguidade é que mais conta e as pós – graduações ajudam. Avaliar o trabalho desenvolvido por cada um deverá ser a principal fonte de atribuição do mérito e das promoções. O resto deve passar para plano secundário e ser objeto de realce apenas em momentos próprios de mudança de responsabilidades técnicas, científicas ou de gestão.
- Reforma dos cuidados de saúde primários
Vivemos, há vários anos, com a ideia de que as Unidades de Saúde Familiar foram a solução para o exercício da medicina geral, dando aos cidadãos resposta pronta e resolutiva à maioria dos seus problemas de saúde. A realidade dá-nos, infelizmente, outros sinais: as urgências hospitalares continuam cheias de casos simples,30% dos utentes inscritos não utilizam o seu médico de família, só uma pequena percentagem tem consulta no dia em que a solicita. E, no entanto, esses médicos ganham bastante mais do que os que ainda se encontram em regime tradicional, não dialogam, uns e outros, com os médicos hospitalares, trabalham também eles em part-time, sendo frequente a acumulação com as urgências hospitalares. É um círculo vicioso em que os profissionais ganham e os doentes perdem.
Impõe-se uma reforma profunda do modelo atual que defina metas assistenciais mínimas a cumprir, em matéria de disponibilidade e prontidão e na resolução dos problemas. Enviar os doentes para os hospitais é o mais fácil e não cria responsabilidades. Tem que haver mais accountability, uma relação estreita com os médicos hospitalares e um acompanhamento permanente do percurso do doente.
- Integração de cuidados
Os doentes, cada vez mais velhos e portadores de multipatologia crónica, necessitam de uma continuidade de cuidados e um trabalho de equipa entre o médico de família e os restantes profissionais (médicos, farmacêuticos, técnicos de diagnóstico, enfermeiros, fisioterapeutas, psicólogos, etc.).A conceção atual, que separa níveis de cuidados e os põe de costas voltadas não deve continuar, porque os doentes são fortemente prejudicados com isso, repetem desnecessariamente diagnósticos e exames, perdem tempo, tomam medicamentos a mais e são pior tratados. Ao longo de dezenas de anos foi-se cimentando esta barreira entre os hospitais e a medicina familiar, cheia de acusações e temores recíprocos, alijar de responsabilidades e rivalidades mesquinhas. Encarar uma integração orgânica dos cuidados, com partilha obrigatória de compromissos clínicos e responsabilidades no acompanhamento do doente é essencial para que os recursos sejam bem utilizados e os doentes melhor e mais rapidamente tratados.
- Reorganizar os hospitais
Não é possível funcionarmos com hospitais com horários carregados de manhã e vazios de tarde. A plena dedicação dos profissionais não se obtém por decreto ou decisões administrativas. A motivação é essencial e isso só se consegue com remunerações que premeiem os que mais trabalham, através de modelos relacionados com a atividade desenvolvida. E até é admissível que o exercício cumulativo com a atividade privada tenha cabimento sem afetar essa dedicação, desde que bem limitado e devidamente regulado. Há muitos médicos em acumulação de funções que dão o exemplo de dedicação e empenho no tratamento dos doentes públicos.
Por outro lado, os serviços clínicos estão muito pulverizados nos hospitais, com práticas muito atomizadas e pouco comparadas. Precisamos de mais disciplina e mais avaliação, porque os doentes são clientes indefesos perante o erro, se não houver um mecanismo que supervisione as boas práticas. A criação generalizada de departamentos médicos por doenças e não por especialidades, que integrem de forma coordenada o conhecimento de vários especialistas e deem as respostas integradas que os doentes precisam, reduzem tempos de internamento, garantem melhores cuidados, promovem a celeridade necessária e dão mais conforto e humanização.
Com a integração de cuidados e a nova reforma dos cuidados de saúde primários, estaríamos em condições de empreender um dos maiores desafios que o nosso SNS nos coloca: reduzir para metade a afluência de pessoas aos serviços de urgência. Nos países mais desenvolvidos da Europa, os serviços de urgência são áreas com poucos doentes por dia, com uma procura pertinente, por doença súbita ou por acidente. Os recursos dedicados às urgências são, por isso, escassos e isso permite investir nos cuidados programados, com internamentos planeados a partir do domicílio, com meios complementares de diagnóstico vocacionados para os doentes em consulta e internados, com a ocupação dos blocos operatórios ao longo do dia com uma forte componente verdadeiramente ambulatória em que as intervenções programadas avançam normalmente até à 20:00h. Para isso os horários médicos são desfasados, para que não haja concentração de manhã e esvaziamento à tarde. São regras básicas e simples de racionalização, que teremos que implantar a médio prazo no nosso SNS.O muito que se pode poupar em mais profissionais e mais horas extraordinárias poderá ser alocado no “serviço ao cliente”, investindo em nova tecnologia ou em investigação clínica.
- Apostar no digital
A rede pública de informação de saúde está longe de poder corresponder aos mínimos desejáveis para respondermos com segurança às necessidades dos doentes. A informação clinica de cada doente encontra-se dispersa por diferentes bases de dados, muitas vezes sem interoperabilidade, o que impede a sua análise integrada e contínua. Se, por exemplo, o doente faz um exame complementar no convencionado, o respetivo resultado não é integrado no processo do doente, podendo perder-se ou extraviar-se. Não temos no SNS um processo único por doente que cubra todo o seu percurso entre cuidados primários, secundários e continuados. Esta truncagem ou ausência de informação é muitas vezes causadora de erros diagnósticos, repetição de exames, prescrições incoerentes e múltiplos atrasos. Os custos para o SNS e os riscos para os doentes são incomensuráveis.
O PRR atribui uma prioridade ao digital no SNS, não só na perspetiva intrínseca da informação clínica, mas também no que concerne a ferramentas de monitorização das condições de saúde à distância, o que será crucial para desinstitucionalizar os cuidados de saúde e aproximar as respostas da comunidade e do domicílio dos doentes. Esperemos que o próximo governo aproveite bem esta oportunidade, que é única e irrepetível.
Confesso que não vejo a direita parlamentar com vontade e capacidade técnica para este caderno de encargos. Não está convencida que valha a pena manter os principais pilares do SNS (propriedade pública, prestação pública e acesso universal e tendencialmente gratuito) apostada que estará em liberalizar o mercado, promover a competição e aliviar as responsabilidades do Estado. Mas também não vejo a ala mais à esquerda do parlamento com vontade em reformar o SNS, agarrada que está a fetiches que poderão agradar aos grupos profissionais, mas não resolvem os problemas dos doentes.
Restar-nos-ia, em boa verdade, o PS, que pela sua natureza, posicionamento político e conhecimento técnico tem aqui especiais responsabilidades. Mas tenho que confessar que não o vejo com o élan estratégico que consiga convictamente sobrepor-se ao taticismo que até agora tem imperado. Esperemos que esta lição, de cedência em cedência até ao chumbo do OE, não se repita no futuro próximo e possamos ter um governo que assuma o compromisso de reformar o SNS, colocando os doentes no centro das suas decisões.
ÍNDICE SINTÉTICO DE RISCO (semana de 1 a 7 de novembro de 2021) *
Na última semana assistimos a um aumento significativo no número de novos casos (cerca de 25%) acompanhado de uma subida, também marcante, no número de óbitos (100%, mas com valores absolutos baixos – de 3,42/dia para 6,83/dia). Em contrapartida, a existência média de doentes em internamento desceu cerca de 3%, comprovando que, embora os infetados tendam a aumentar, a gravidade dos casos é proporcionalmente mais baixa.
.Índice: 0,399305 (baixo risco)
.Tendência: subida
.Cor do semáforo: verde
.Dimensão pior: positividade dos testes
. Dimensão melhor: número de doentes internados
(*) Cálculo realizado com base nos dados de sábado, 6 de novembro.
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