O INE publicou em julho a sua conta satélite da saúde referente a 2020 (resultados ainda provisórios). As grandes novidades prendem-se com a subida pronunciada da despesa pública e, ao invés, com a forte descida da despesa privada. Pela primeira vez, desde 2010, a despesa pública em saúde ultrapassa os 2/3 da despesa, com 67,6% dos encargos totais. No balanço global, as despesas aumentaram 0,4% face ao ano anterior e atingiram 10,1% do PIB, o valor mais elevado desde 2009.
A explicação para este fenómeno estará com certeza na pressão da covid-19 sobre os serviços do SNS na mobilização de mais recursos e, por outro lado, na retração da procura privada pelo efeito conjugado do confinamento e do receio de contágio em ambiente hospitalar.
Importa, todavia, referir que este aumento brutal na despesa pública corrente (de 6,6%) teve como pano de fundo, uma diminuição significativa da atividade dos serviços (em cuidados primários e hospitais), quer em consultas, quer em internamentos, quer em cirurgias ou urgências, em valores que oscilaram entre 20 e 40% no computo geral do ano. Ou seja, gastou-se mais mas fez-se bem menos, o que demonstra a ineficiência dos serviços.
Vale a pena adiantar um pouco mais sobre as caraterísticas da oferta pública em saúde. Sendo cada vez mais especializada, acomoda-se com muita dificuldade a uma procura cujo perfil se altera radicalmente, como foi o caso da infeção pelo vírus Sars – CoV -2, iniciada em março de 2020. Às necessidades, por exemplo, de pessoal especializado em cuidados intensivos não foi possível responder com a transferência de cirurgiões ou enfermeiros obstetras para esse trabalho. Mas já seria possível transferir horas de trabalho de urgência para trabalho com doentes COVID, já que o volume da procura urgente caiu quase 40%. E suponho que isso não foi feito na grande maioria dos casos.
Em 2020, e por força da covid-19, os serviços públicos reforçaram as suas equipas, criaram modelos de trabalho com equipas em espelho, trabalhando uns e descansando outros para que a cadeia de transmissão do vírus fosse bloqueada, adquiriram mais meios de proteção como os EPI, medicamentos e outros consumos, que tiveram como consequência o aumento de 6,8% nos custos com pessoal e de 16% em consumos intermédios.
As despesas de saúde, entre 2016 e 2020 subiram cerca de 17%, a preços correntes, atingindo em 2020 o valor de despesa per capita mais elevado de sempre (1.989,1€). Curiosamente, foram as despesas privadas que mais cresceram nesses anos, atingindo em 2019, 36,2% do total das despesas em saúde. Mas com a COVID, esse valor, como acima já se referiu, desceu para 32,4%. Em 2020, a despesa pública cresceu 6,6% face ao ano anterior e a despesa privada caiu 10,3%, valores muito significativos e que, de súbito, contrariaram as tendências dos últimos 5 anos.
Os fatores que mais impactaram nesta descida da despesa privada têm a ver com a quebra substancial da procura dos utentes de subsistemas públicos voluntários, como a ADSE (-8,4%) e com o “out-of-pocket” das famílias que diminuiu 12,8%. Neste caso, registe-se que entre 2017 e 2019 as despesas das famílias em saúde tinham crescido entre 5% e 7,5% ao ano e que em 2020 se registou uma inversão dramática nessa componente da despesa privada.
Parece evidente que a covid-19 provocou uma retração generalizada da procura de cuidados de saúde, seja em serviços públicos, seja em serviços privados. O aumento da despesa pública tem exclusivamente a ver com a COVID, pois nos outros segmentos da procura a queda foi significativa e generalizada, também no SNS. Isto teve, aliás, como consequência, uma forte diminuição da compra de serviços clínicos externos por parte do SNS, com forte repercussão em tratamentos e exames complementares realizados no setor privado (imagiologia, análises clínicas, cirurgias, medicina física e reabilitação, por exemplo).
Em 2021, e ainda sob o signo da covid-19, a despesa pública em saúde continua a crescer significativamente (+ 9,1% de janeiro a julho, face a período homólogo – DGO, execução orçamental, agosto, 2021).
Uma vez mais, é na rúbrica dos recursos humanos que sentimos os maiores impactos (+245,5 milhões de euros em 7 meses). E regista-se uma retoma expressiva nos gastos em meios complementares de diagnóstico e terapêutica, face a 2020, na casa dos 33% (+170,5 milhões de euros em 7 meses). Precisamente nas duas áreas em que a eficiência e a efetividade são mais críticas. Estará o Governo disposto a introduzir alguma “accountability” para gastarmos melhor os recursos destinados à saúde?
A covid-19 obriga-nos a refletir sobre a organização que temos no nosso SNS e na forma como a procura de cuidados de saúde alimenta a atividade dos serviços. Registou-se uma redução acentuada da procura, extensiva também ao setor privado. Com isso ficaram para trás muitas situações clinicas a merecer cuidados mais diferenciados. Mas com isso, também se eliminou uma parte não suficientemente estimável de casos sem relevância clinica, como sucedeu de forma objetiva nos serviços de urgência. Na procura de meios complementares no exterior do SNS, o facto de os prescritores – leia-se os médicos – terem reduzido o volume de pedidos, condicionou a procura, mas também aqui deveremos questionar a pertinência e adequação desses pedidos e a redundância de alguns atos. Preocupante é, agora, a retoma brutal que já se regista, em parte para recuperar atrasos, mas em parte, também, desnecessária.
JORGE SAMPAIO
Foi o Presidente que mais se envolveu, até agora, nas questões da saúde, tendo criado um fórum informal de discussão que incluía peritos das mais diversas áreas do conhecimento, da medicina à gestão, da prestação à investigação, da saúde pública às mais sofisticadas especialidades, dos profissionais aos doentes. Tinha como propósito acabar com os bloqueios que nos impediam de ver para além do óbvio. Conseguiu-o em grande parte. Aqui fica a minha singela homenagem a um político de exceção.
ÍNDICE SINTÉTICO DE RISCO SARS-COV – 2
(80ª semana: 6 a 12 de setembro*)
Registou-se uma evolução muito positiva do risco, com descidas sensíveis em todos os indicadores.
.Índice sintético de risco: 0,62977 (baixo risco)
.Tendência: descida
.Cor do semáforo: verde
. Dimensão pior: positividade dos testes
. Dimensão melhor: número diário de novos casos.
*Valores calculados no sábado, 11 de setembro, dia em que escrevo.