Depois de há poucas semanas o mundo cristão ter vivido a Páscoa e os judeus a Pessach, amanhã os muçulmanos entram no Ramadão, dando início a um mês inteiro de jejum. Sendo o quarto dos Pilares do Islão, o Ramadão tem exatamente o nome do nono mês do calendário islâmico – face ao Calendário Gregoriano, todos os anos o Ramadão se “adianta” em virtude de seguir o ciclo lunar.
Este é o mês mais sagrado do Islão, dedicado à prática intensa da oração, do recolhimento, da constante lembrança da dedicação da vida a Deus. O jejum prescrito é para ser cumprido, integralmente, desde a aurora até à noite, estando interdito o consumo de comida e de bebida (salvo por razões de saúde), de fumar e de ter relações sexuais. Apenas em condições de fragilidade se está dispensado destas obrigações.
Para o crente, o sentido profundo do Jejum do Ramadão é o de um testemunho de gratidão para com Deus, e constitui ocasião para uma peregrinação interior. Jejuar é, num entendimento académico tradicional, um misto de expiação, através de uma purificação, e de dedicação, através da renúncia. Mas o jejuar poucas vezes ocupa um tempo tão imenso como no Ramadão. Pela dimensão continuada deste sacrifício coletivo, o Ramadão é também um instrumento de irmandade, de fraternidade, de comunhão numa mesma natureza, o ser muçulmano.
Numa sociedade laicizada, estamos, grande parte de nós, longe do significado de uma pertença religiosa que se viva com a intensidade com que se vive o Ramadão. Os sacrifícios coletivos fazem sentido exatamente no campo da fraternidade, no que coloca todos os indivíduos num patamar de cidadania religiosa: irmãos perante uma ideia e prática de divino. O Ramadão é a afirmação interior, familiar e pública da condição de muçulmano. Fraternalmente muçulmano, não individualmente religioso do Islão.
Contudo, como será vivido este Ramadão em contexto de confinação? Este marco no calendário é um misto de recusa ao individual e afirmação do coletivo. Ora, como se vai viver, em termos de fé, um não-coletivo?
Todos os fins de tarde, em comunidade, o muçulmano deveria quebrar o jejum; não o vai fazer. Em casa, à noite, a refeição deveria ser alargada, acolhendo, mesmo, os que não podem ter fartura na sua mesa; novamente, isto não vai acontecer. Por fim, as orações comunitárias, tão importantes neste mês, não poderão ter lugar, com mesquitas encerradas e sem a oportunidade de orar, ombro com ombro, como dita o dever de ser irmão na fé.
E esta equação tem a atualidade de uma religião, mas também é válida para todas as outras. A vivência faz-se no coletivo. Seja a religiosa ou, até, a profissional. Enviamos trabalho por email, reunimos pelo Zoom, mas não “estamos”. É interessante que em algumas línguas esta pequena nuance ganha ainda mais sentido. No inglês, o “ser” e o “estar” recorrem ao mesmo verbo, to be. No limite, podemos “ser” sem “Estar”? O material define, em muito o ser.
Neste Ramadão, os muçulmanos não vão “estar” em comunidade, não vão quebrar o jejum em festa coletiva. Vão “ser” muçulmanos sem “estar” em congregação, tal como os cristãos, na Páscoa, não o foram em comunidade, na ecclesia, a assembleia.
Também a noção de Religião tem de se adaptar e fugir ao literalismo dos textos sagrados. “Onde estiverem dois ou três reunidos em meu nome, aí estou eu no meio deles” (Mateus 18:20). E se estiverem confinados, Jesus não estará no meio deles?