Todos sabemos que o número de infectados com SARS-CoV-2 tem estado a aumentar e que ultrapassou há muito os valores de Abril (linha cinza claro no gráfico abaixo), mas isso pode ser justificado com o aumento do número de testes. A proporção de casos em populações mais velhas (azul escuro) é menor do que na primeira onda, mas isso pode ser explicado por se estarem a testar mais assintomáticos. O que não deve ter mudado, entre Março e agora: os critérios para internados em cuidados intensivos (cinza escuro) e os critérios para morrer (linha preta). Ambos estão agora ao nível do pico de Abril. A seta mostra a altura em que foi decretado o fecho das escolas, em Março, já depois de muita gente ter reduzido a sua exposição de forma voluntária. Este confinamento aconteceu quando os casos começavam a subir e passaram-se 3 a 4 semanas antes do número de casos, internados e mortes ter atingido o pico e começado a baixar. Ou seja, se voltássemos a confinar agora, teríamos aproximadamente mais três semanas de crescimento antes de poder ver os efeitos desse confinamento, com 60 a 100 mortos diários por essa altura.
Evolução da pandemia em Portugal

Legenda do gráfico: Cada ponto representa uma média semanal. As barras mostram a distribuição de novos casos por idade, lida no eixo da esquerda (sem dados para os dias 3 e 29 de Outubro). Os intervalos dos mais novos, a vermelho, e dos mais velhos, a azul escuro, cobrem mais anos do que os intermédios. As linhas, a ler no eixo da direita, mostram o número de casos confirmados a dividir por 10, a cinza claro, o número de internados em cuidados intensivos, a cinza escuro, e o número de mortes vezes 10, a preto. Estas normalizações só servem para poder mostrar todas as curvas no mesmo gráfico. Fonte dos dados aqui.
Poucas ferramentas na caixa
O que fazer então para travar a pandemia? Sem vacina nem tratamento eficaz, há três possibilidades: 1) evitar os contactos (é isto que fazem os confinamentos); 2) caso os contactos tenham que acontecer, tentar reduzir a probabilidade de contágio (é isto que tentam fazer, por exemplo, as máscaras); 3) caso tenha havido contacto e contágio, tentar identificar, testar e isolar os infectados o mais rapidamente possível para que não infectem mais ninguém (é isso que tenta fazer o contact tracing).
Em Março optámos pela primeira, que foi eficaz mas teve custos vários, económicos e sociais. Enquanto a epidemia continuava controlada, em Maio e Junho, optou-se principalmente pela terceira, e isso foi suficiente para eliminar surtos locais. Neste momento, é mais ou menos claro que a estratégia 3) está no limite (está a ser cada vez mais difícil identificar linhas de transmissão ) e estamos a tentar apostar num sistema de isolamento local e a colocar grande ênfase na estratégia 2). Esta, que depende muito mais da responsabilidade individual, também não está a funcionar, ou o número de casos não estaria a crescer desta maneira.
Também não existe qualquer indicação de que interacções curtas e ao ar livre dêm origem a contágios, sendo pouco provável que a obrigatoriedade de utilização de máscaras na rua venha a ter algum impacto. E ainda nem chegou o frio e com ele outros vírus (influenzas, coronavirus, rinovirus, adenovirus) que causam sintomas tão semelhantes, que a confusão só poderá aumentar.
Mas se as estratégias 2) e 3) não estão a ser suficientes, ou deixamos a epidemia continuar em crescimento descontrolado, ou teremos de voltar a confinar. Então porquê esperar? Muitos dirão que “é a economia, estúpida!”. Mas parece-me que a questão central não é essa, porque a economia vai continuar a sofrer enquanto a epidemia estiver descontrolada. Com tal número de casos, não é preciso o governo decretar confinamento para que milhares de pessoas não entrem nas lojas, nem nos restaurantes. A queda no PIB tende a correlacionar bastante bem com o número de mortes.
Muitos outros referem a mortalidade não-COVID, mas esta também não desaparece só porque queremos fingir que está tudo bem. Mais uma vez, enquanto estiver descontrolado, as pessoas evitarão ir aos hospitais, às consultas. Quanto mais internados, menos camas para tudo o resto. É uma pandemia, este vírus mata. Muita coisa vai correr mal, temos de tentar aguentar o melhor possível e a melhor coisa para a economia, para a saúde de todos, é travar estes surtos. Infelizmente, para já, isso não se consegue sem evitar contactos. E quanto mais tarde, pior: quanto mais surtos, mais casos, mais longo e apertado terá de ser o confinamento. Se tivermos de voltar a fechar as escolas, o país volta a parar.
Outras ferramentas?
Das várias coisas que podem ser tentadas, destaco quatro, porque sabemos que o maior número de infecções está a surgir em contexto familiar (pouco a fazer) e de trabalho (também escolar): 1) Exigir que todas as pessoas que podem ficar em tele-trabalho, fiquem em tele-trabalho. Todas. Esta foi uma das medidas anunciadas ontem e que era necessária há muito. Tem de incluir empresas, muitos serviços. Deveria abranger também as universidades, onde tem havido surtos e cujo funcionamento online cansa mas não mata. E devia vir acompanhada de medidas para tornar o tele-trabalho possível, com atenção à disparidade de condições; 2) Reforçar muito o controlo, principalmente nos lares e locais de trabalho presenciais, para garantir que há condições de segurança e higiene. Os negacionistas existem e têm de ser responsabilizados por não se protegerem nem protegerem os outros. Escrevo às 4 da manhã enquanto vizinhos adolescentes com pais fora, gritam “bota abaixo” a plenos pulmões. A polícia veio, eles fingiram não estar em casa, a festa recomeçou; 3) Considerar confinamentos curtos e intermitentes. Esta é uma ideia que começa a ser modelada, cujas vantagens seriam manter os números baixos e minimizar impactos. Neste momento acho difícil evitar um “lockdown” geral, mas poderia ter sido tentado no final de Setembro e pode ser uma opção no futuro, para travar o crescimento enquanto ainda é moderado. Trabalhos como o do CERENA e do ITI-LarSys, do Instituto Superior Técnico, poderão ser cruciais para tentar simular agora o efeito de confinamentos regionais; 4) avançar com um sistema de rendimento mínimo, que garanta condições dignas de sobrevivência e reduza a exposição desnecessária, o risco por desespero. Estas medidas não reduzem a necessidade de responsabilidade individual, mas reforçam a responsabilidade do Estado e do pensamento de médio e longo prazo.
Preparar para o futuro
Tenho lido muitas vezes que toda esta situação era imprevisível, que não podíamos ter feito nada. Isto não é verdade. Cientistas andam há décadas a alertar para o risco de uma pandemia destas dimensões e esta não é a primeira nem será certamente a última que enfrentaremos. Não querendo criticar quem está a decidir agora, a verdade é que as instituições não estavam (e não estão) preparadas para recolher, tratar, partilhar e analisar dados, fundamentais a decisões baseadas em evidência. Existe uma comunidade científica formada e capaz de dar apoio mas a ausência do Ministério da Ciência e Ensino Superior no gabinete de crise é paradigmática da incompreensão do papel que esta comunidade tem de ter. Quando surgir uma vacina, um tratamento, será graças a esses esforços. Todos os testes, tratamentos actuais, são graças a esforços passados.
Os institutos de metereologia foram criados na sequência de desastres naturais de grandes proporções. Agora, estes institutos servem exactamente o propósito de tentar antecipar eventos complexos, através de ciência de ponta, dando tempo às populações de se prepararem. Não sei se já alguém quantificou as vidas salvas graças a este trabalho, mas deve ser um número muito impressionante. Precisamos de institutos semelhantes em saúde pública, abertos, multidisciplinares, coordenados com congéneres internacionais. A melhor altura para os ter criado tinha sido há décadas. A segunda melhor altura é agora.