A encíclica Fratelli Tutti divulgada no passado domingo em Roma, inspira-se sobretudo em Francisco de Assis, uma referência permanente do papa Francisco. O documento pontifício, cujo título se pode interpretar como “a todos os irmãos”, versa justamente a fraternidade e a “amizade social”. Desde João XXIII e a sua Pacem in terris (1963) que a tradição manda que, sempre que estes pronunciamentos papais abordam questões sociais, económicas ou políticas, são dirigidas, não apenas ao povo católico mas ainda a todos os “homens e mulheres de boa vontade”.
Note-se que no mundo cristão não católico não existe uma voz global reconhecida que fale ao mundo, em particular no Ocidente. Talvez o mais próximo disso seja o arcebispo de Cantuária, líder espiritual da Igreja Anglicana, mas que não desempenha esse papel, ou Billy Graham no setor evangélico, mas que também nunca o fez enquanto viveu, talvez por não sentir legitimidade para tal, dada a forma de organização não estrutural deste campo religioso. Limitou-se ao seu múnus espiritual e a ser conselheiro de presidentes americanos.
Esta carta já foi considerada como o testamento político do papa, visto que, no entender de António Marujo, surge como uma “sistematização do pensamento político e social do Papa, no qual cabe um diagnóstico vasto sobre a situação no mundo, no que diz respeito a problemas a que ele tem dedicado muitas das suas intervenções: migrantes e refugiados, populismos, racismo, novas escravaturas, tráfico de seres humanos, violência sobre mulheres e crianças, pena de morte – e também, de novo, o drama ecológico.”
O documento faz um diagnóstico severo deste nosso mundo doente mas não deixa de ser uma mensagem de esperança. Começa por concentrar a sua atenção nas questões ligadas à problemática dos migrantes e refugiados, dos movimentos populistas, mas também da xenofobia e racismo, das novas escravaturas, do tráfico de seres humanos, da guerra, da violência sobre mulheres e crianças, da pena de morte, da emergência ambiental, dos idosos e dos portadores de deficiência.
Mas não esquece o “oportunismo da especulação financeira e da exploração”, o relativismo, o “mundo surdo” em que vivemos, dada a crescente dificuldade de diálogo, os fanatismos que induzem à destruição dos outros, a divulgação de informações e notícias falsas, que fomentam preconceitos e ódios, a “agressividade social”, ou a incapacidade da conexão digital para lançar pontes, por não ser capaz de “unir a humanidade”. Ou o modelo abusivo de globalização e o individualismo.
Em termos de macropolítica Francisco aborda as sociedades que deixam para trás os mais fracos. Formalmente aceitam que todos os cidadãos tenham as mesmas oportunidades mas não estão dispostas a “investir para que os lentos, fracos ou menos dotados possam também singrar na vida”, uma vez que “investir a favor das pessoas frágeis pode não ser rentável, pode implicar menor eficiência; requer um Estado presente e ativo e instituições da sociedade civil que ultrapassem a liberdade dos mecanismos eficientistas de certos sistemas económicos, políticos ou ideológicos, porque estão verdadeiramente orientados em primeiro lugar para as pessoas e o bem comum.”
O papa não só responsabiliza o Estado para que preste atenção aos que não dispõem à partida das melhores condições familiares, económicas, de educação ou capacidades pessoais notáveis, como também condena o neoliberalismo: “O mercado, por si só, não resolve tudo, embora às vezes nos queiram fazer crer neste dogma de fé neoliberal”. E recorda a fragilidade dos sistemas mundiais perante a pandemia, pois “evidenciou que nem tudo se resolve com aliberdade de mercado e que, além de reabilitar uma política saudável que não esteja sujeita aosditames das finanças, ‘devemos voltar a pôr a dignidade humana no centro e sobre este pilardevem ser construídas as estruturas sociais alternativas de que precisamos”. A economia deve estar sujeita à política e não o contrário. Nesse sentido combate os nacionalismos e preconiza a reforma da ONU.
O apelo é sempre ao diálogo social (“a paz social é laboriosa, artesanal”) e à fraternidade, pois “ninguém se salva sozinho.” Por isso a única solução é dar voz aos percursos de esperança e caminhar neles. Propõe-se o perdão e a paz, mas sem abdicar da memória nem defender a impunidade.
Partindo da parábola do bom samaritano, Francisco percorre inúmeros textos bíblicos e mesmo a tradição judaica para pugnar pelo exercício da compaixão e o reconhecimento da dignidade humana, compelindo-nos a resistir à tentação de vivermos indiferentes à dor alheia, porque “não podemos deixar ninguém caído ‘nas margens da vida’. Isto deve indignar-nos de tal maneira que nos faça descer da nossa serenidade alterando-nos com o sofrimento humano. Isto é dignidade.”
A chave para esta atitude é que o meu “próximo” será todo aquele de quem eu me aproximar e não o contrário, pois “já não digo que tenho ‘próximos’ a quem devo ajudar, mas que me sinto chamado a tornar-me eu um próximo dos outros.”
Mas Francisco não esquece os erros da igreja católica: “às vezes deixa-me triste o facto de, apesar de estar dotada de tais motivações, a Igreja ter demorado tanto tempo a condenar energicamente a escravatura e várias formas de violência. Hoje, com o desenvolvimento da espiritualidade e da teologia, não temos desculpas.”
Considera ainda as religiões como instrumentos ao serviço da fraternidade no mundo. Aliás, nesta sua reflexão sobre a fraternidade universal, Francisco confessa ter-se sentido “motivado especialmentepor São Francisco de Assis e também por outros irmãos que não são católicos: Martin LutherKing, Desmond Tutu, Mahatma Mohandas Gandhi e muitos outros.”
Nem podia ser de outro modo.