Um ator, Bruno Candé Marques, nascido em Lisboa há 39 anos, é morto a tiro, à hora de almoço de um sábado de julho, num bairro de gente modesta da capital. Deixa três filhos pequenos e muitos projetos por concluir. Entretanto, soube-se que o alegado homicida é antigo combatente da Guerra Colonial. Na vizinhança, não lhe são conhecidas grandes amizades, apenas há relatos de quezílias por motivos irrelevantes. Naquele sábado fatídico, terá embirrado com a cadela de Candé. Entre os lojistas do bairro, também há testemunhos de ter proferido insultos racistas como “volta para a sanzala!” e “vai para a tua terra!”, que, de acordo com a opinião de juristas ouvidos pelo jornal Público, não são suficientes para se concluir que o crime foi motivado por ódio racial.
Uma semana depois, vários movimentos contra o racismo saem à rua em protesto pela morte de Bruno Candé. Logo a seguir, André Ventura, o presidente demissionário do Chega, organiza uma contramanifestação para provar que “Portugal não é racista” e promete promover uma marcha “sempre que a esquerda e a extrema-esquerda” trouxerem o tema do racismo para a agenda. Na Praça do Município, numa carrinha transformada em palco de comício, Ventura advoga o fim da Terceira República e, a despropósito, envia recados a Rui Rio: “O que vai acontecer é que o PSD desaparece completamente e o Chega assumirá esse lugar. Porque já estamos fartos desta conversa de que tudo é racismo em Portugal.”
Como é que uma morte tão chocante se transforma num “assunto político”, a acentuar clivagens entre esquerda e direita? O que têm as instituições a dizer sobre o que se passou, para lá do silêncio, que fomenta o clima absurdo de polarização entre os que são “a favor” e os que são “contra”? É evidente que o caldo cultural que insiste em classificar ideologicamente a luta antirracista também se alimenta dessa apatia. Estamos em 2020 e continua a ser preciso escrever que o racismo é a mais desprezível de todas as atitudes: a luta antirracista não é da esquerda nem da direita; é, devia ser, uma luta de todos. Ouça-se o elogio fúnebre de John Lewis, o último dos oradores sobreviventes da Marcha sobre Washington, proferido por Barack Obama na semana passada. São 40 minutos de uma eloquência comovente, preacher Obama no seu melhor, sobre o legado de Lewis e o modo como o cinismo está a destruir as estruturas de poder das democracias liberais: “Ele acreditava que em todos nós existe o desejo de fazer o que é certo, que em todos nós existe uma vontade de amar todas as pessoas e de estender a todas elas o direito à dignidade e ao respeito.” Em Portugal, podíamos começar por aqui a discussão da luta antirracista. E, já agora, a da Guerra Colonial.