Com uma estimativa de queda do PIB de 6,9% para o corrente ano, a Resolução do Conselho de Ministros de 4 de junho aprovou um Plano de Estabilização Económica e Social (PEES) para o curto prazo, cujos efeitos se projetam ainda para este ano. A seguir, o orçamento suplementar aprovado em CM no dia 9 de junho, acrescentou ainda verbas adicionais para a atividade corrente de cada ministério.
O SNS, que esteve no centro das atenções de todos nós nos últimos meses, foi contemplado, no PEES, com um conjunto de decisões, em espelho, face aos constrangimentos que temos vivido:
- Recuperar consultas e cirurgias
Com a COVID, muitas consultas e muitas cirurgias programadas foram canceladas, nuns casos por determinação dos hospitais, noutros por receio dos doentes. A retoma intensiva destes atrasos vai ser excecionalmente incentivada junto dos profissionais, através de pagamentos ao ato, adicionais, majorados para 95% do valor de referência (as equipas apenas recebiam 55%), nas primeiras consultas, e de 75% (antes 55%) nas cirurgias. Estima o Governo uma despesa extra de 7,7 milhões de euros para as primeiras consultas e de 26 milhões de euros para recuperar 25% das cirurgias em atraso. Esta medida corresponde às expetativas e às necessidades dos doentes que aguardam a resolução dos seus problemas e que, nalguns casos, viram piorar o seu estado de saúde. Como, mesmo antes da pandemia, havia listas de espera em excesso, e algumas sem justificação, corremos o risco de, nalguns casos, beneficiarmos o infrator. É um risco que teremos que correr. Entretanto, parece que alguns hospitais de Lisboa estão a suspender esta retoma com medo do recrudescimento da COVID. Excesso de zelo?
- Nova rede de referenciação em cuidados intensivos
As unidades de cuidados intensivos foram um tema prioritário durante esta pandemia. A falta de camas suficientes em Portugal, face aos ratios europeus, fazia temer o pior. Felizmente, nem houve falta de camas nem houve falta de ventiladores. Mas o mote ficou dado para se reverem dotações e aumentar o stock de respostas nesta área.
Tem-se como objetivo chegar às 919 camas de cuidados intensivos, atingindo assim um ratio de 9,4 camas por 100 mil habitantes, quando hoje andaremos nas 7 camas. O governo reserva, para a ampliação de 16 serviços e um novo sistema de informação em rede, 26 milhões de euros.
O aumento de camas e de ventiladores (que, em parte, já sucedeu no decurso desta pandemia), embora reivindicado desde sempre pelos intensivistas, nunca mereceu preocupação prioritária por parte dos governos. A pandemia teve a virtude de pôr a questão na agenda política, mesmo que apenas no campo teórico. E conviria ter alguma cautela na análise das questões de organização das UCI em Portugal, antes de se avançar para a ampliação da rede. A distribuição das unidades, a sua polivalência ou hiperespecialização, a combinação entre cuidados intensivos e cuidados intermédios, os critérios de admissão e alta, a formação dos profissionais, a articulação em rede da gestão das camas, quer no setor público, quer no setor privado, são questões prévias que deverão ser bem estudadas. Há, na Europa, uma enorme discrepância na densidade de camas de cuidados intensivos. A Alemanha tem cerca de 30 camas por 100 mil habitantes, a Itália 12 (e não chegaram nesta crise…), a Roménia tem mais de 20, países mais ricos, como a Holanda, Finlândia ou Suécia têm cerca de 7. Ou seja, a preocupação aritmética em atingir a média da UE pode ser uma forma redutora de olhar para o problema.
- Valorização dos profissionais
É, a meu ver, uma área prioritária de intervenção no SNS. Os profissionais de saúde, todos eles, deveriam ter carreiras próprias, dadas as especificidades técnicas e éticas do seu trabalho. As remunerações são manifestamente baixas e já não atraem os melhores, que vêm no setor privado a alavanca económica e social para a sua vida. As acumulações e as horas extraordinárias continuam a ser o complemento que muitos profissionais procuram para se manter no SNS. É uma floresta de enganos que conduz a baixos níveis de produtividade, pouca dedicação e, nalgumas profissões, ao excesso de mão-de-obra. Há exceções que acabam por ser injustamente tratadas e que apenas confirmam a regra. A contratação de médicos a empresas de trabalho temporário é mais um flagelo que se instalou em Portugal, porque são profissionais sem enquadramento, muitas vezes com pouca formação e muito caros (mais de 100 milhões de euros por ano).
Numa decisão de curto prazo, que não equaciona nenhum destes problemas, o Governo decidiu agora aumentar as dotações de alguns grupos profissionais, designadamente, assistentes operacionais (+ 1320), enfermeiros (+912), assistentes técnicos (+480) e técnicos superiores de diagnóstico e terapêutica (+220), num total de cerca de 3 mil novos postos de trabalho a que se juntam os 2800 que, entretanto, foram contratados para a pandemia e que vão continuar. Percebe-se a prioridade, face a um histórico de longos anos de falta de recursos naquelas áreas. Mas também se percebe que a COVID veio reforçar necessidades, de mais higiene e mais rigor no contacto com doentes, nos meios complementares de diagnóstico e nos registos clínicos, tarefas que não são médicas, mas são essenciais. Uma nota particular sobre os assistentes operacionais e os assistentes técnicos. Os primeiros são essenciais na prestação direta de cuidados (eram os antigos auxiliares de ação médica) e os segundos cumprem tarefas administrativas, que vão do atendimento dos doentes e familiares, até aos registos clínicos, marcações de consultas e exames, pagamento de taxa moderadoras, etc. São atividades que exigem conhecimento, formação, sensibilidade, ética e uma deontologia muito própria. Pois, mas esses profissionais são recrutados num mercado indiferenciado, sem preparação, não existindo uma formação própria para o exercício profissional. É tempo de reformarmos estas carreiras, dar-lhes a dignidade que elas merecem, criar um modelo de formação e exigir habilitações aos novos candidatos.
Para esta valorização dos profissionais o Governo prevê gastar 29 milhões de euros, que, note-se, serão transformados em despesa futura permanente.
- Reforço da resposta aos idosos e dependentes
É a meu ver a medida mais inovadora que resulta desta Resolução do Conselho de Ministros para a área da Saúde. Todos percebemos que o novo vírus afetou particularmente as residências seniores, que se revelaram ser estruturas frágeis perante a doença e o contágio.
Os lares não estão tecnicamente preparados para lidar com a doença crónica que atinge invariavelmente grande número dos seus residentes. As situações de falta de acompanhamento médico e de enfermagem são frequentes, o staff destas unidades não tem conhecimentos ou formação em cuidados de saúde e não sabe prevenir ou tratar precocemente os sinais de doença. A Ministra da Saúde tinha já, em 24 de abril, tomado a decisão de colocar os lares sob a supervisão dos centros de saúde, para os casos COVID. O que agora o Conselho de Ministros decidiu foi alargar o âmbito de intervenção para todas as situações de doença, promovendo a visitação periódica das equipas dos centros de saúde. Isso permitirá acompanhar em permanência o estado de saúde dos idosos residentes nessas estruturas, diagnosticar precocemente os problemas, instituir as terapêuticas mais adequadas e, assim, evitar deslocações às urgências dos hospitais. Por outro lado, e com a presença da valência de saúde pública, essas residências passam a dispor de orientações técnicas precisas e adaptadas em matéria de higiene e limpeza, circulação de pessoas e cuidados básicos a ter com os utentes.
Por outro lado, há muitas pessoas idosas a viver nas suas casas, sós ou acompanhadas por outro idoso. É salutar que assim se mantenham, mas precisam de um SNS mais versátil e que responda, no domicílio, às necessidades dos mais dependentes ou com escassa mobilidade.
O Governo atribui estas “novas” competências aos centros de saúde, mas não prevê novas despesas. Haverá alguns investimentos a fazer, em matéria de transportes e novos profissionais. E haverá também a necessidade de implementar novos horários de trabalho, criar equipas dedicadas e estimular estas novas tarefas. A decisão é, assim, boa, mas pode não passar das intenções.
- Valorizar a Saúde Pública
É uma consequência natural da pandemia, dado o papel crucial que estes médicos desempenham nessas circunstâncias. A vigilância epidemiológica, a investigação dos casos, os processos de notificação, as estratégias de combate, são tarefas basilares da Saúde Pública. As remunerações destes médicos não são condizentes com os seus níveis de responsabilidade e de disponibilidade, sobretudo para os que têm competências de “autoridade de saúde”. Por isso, e correspondendo a uma reivindicação antiga destes profissionais, o Governo dispõe-se a gastar 700 mil euros no seu reforço.
- Sistemas de informação
O SNS lida com problemas crónicos de insuficiência de meios em matéria de produção, registo e partilha de informação. Esta pandemia veio evidenciar alguns destes problemas. Uma das áreas mais salientada nesta crise foi a das virtudes das consultas à distância, virtuais e dispensando a deslocação física dos doentes. É toda uma funcionalidade a explorar dadas as inegáveis vantagens que pode representar para doentes e instituições, evitando-se deslocações por vezes longas e incómodas, grandes concentrações de pessoas nos hospitais e centros de saúde e os custos e riscos que isso implica. O Governo pensa gastar até 6,8 milhões de euros nesta reformulação da rede dos sistemas de informação.
- Reforço da rede laboratorial
O Instituto Ricardo Jorge, como laboratório de referência do Estado tem tido um papel determinante e insubstituível no controlo epidemiológico desta pandemia. Para além disso é necessário implementar as condições que permitam com rapidez, eficácia e segurança proceder a colheitas, realizar os testes, validá-los e ter uma resposta em tempo real.
O Governo pretende reforçar estas competências, estimando gastar 8,4 milhões de euros neste projeto.
Estamos, assim, perante um conjunto de medidas de natureza reativa e imediata face à pandemia. Representam um investimento suplementar de perto de 105 milhões de euros para o corrente ano.
A esta verba teremos que adicionar os 500 milhões a mais do orçamento suplementar. Este prevê, essencialmente, a incorporação no Estado dos profissionais contratados na crise da pandemia (206 milhões de euros) e despesas em medicamentos, material de proteção individual e meios complementares de diagnóstico (250 milhões). A dotação orçamental para o SNS deste ano passa, assim, a ser de 11,7 mil milhões de euros, o que representa um acréscimo, face às despesas do ano anterior, de 9,8%. Se nos reportarmos ao ano em que este governo PS iniciou o seu mandato, 2016, registaremos um acréscimo na despesa pública em saúde, no final do ano, próximo dos 30%, podendo ser ainda superior se ocorrerem derrapagens. É um crescimento impressionante, que inverteu as políticas restritivas e de subalternização do SNS seguidas pela coligação de direita, com o apoio e incentivo da troika. Em que situação estaríamos agora se essas políticas tivessem continuado?
Outra coisa é perceber se este caudal de recursos, que sai dos bolsos de todos nós, tem sido bem canalizado, com base numa estratégia coerente em matéria de modernização, de eficiência, de acesso e de equidade, ou se, pelo contrário, tem respondido apenas à pressão dos acontecimentos, como parece evidente nos reforços previstos para este ano.
Aproxima-se um novo “Plano Marshall” para a União Europeia. Esperamos ansiosamente que isso permita levar a cabo uma reestruturação do SNS, com outros horizontes e com outra ambição. A pandemia é apenas um epifenómeno. As questões estruturais continuam por resolver.