No dia do incêndio da Notre-Dame em Paris, Emmanuel Macron dirigiu uma palavra especial aos católicos franceses. Fernanda Câncio, sempre vigilante, não gostou da ideia e queixou-se no Twitter. Do outro lado do mundo, do outro lado do espetro político, num gesto visto por muitos como uma forma de limitar a influência crescente da comunidade islâmica, a Coalition Avenir Québec de François Legault pretende proibir os funcionários públicos de usarem qualquer símbolo religioso. Um e outro gesto remetem-nos para aquilo que, no meu entender, é uma interpretação profundamente errada e perversa do ideal laico.
O ideal laico, tal como eu o entendo, é inseparável da ideia liberal. O princípio segundo o qual o Estado nada pode em matéria espiritual e a Igreja nada pode em matéria temporal estão, aliás, claramente afirmados na Letter Concerning Toleration de Locke, de 1689. O ideal laico é, aliás, quando bem entendido, essencialmente um ideal de tolerância. É uma importante conquista civilizacional inseparável das guerras religiosas europeias que nasce para permitir que diferentes confissões e credos possam florescer na sociedade em situação de absoluta igualdade. O Estado laico, por conseguinte, “não apenas salvaguarda a autonomia do poder civil de toda a forma de controlo exercido pelo poder religioso, mas, ao mesmo tempo, defende a autonomia das Igrejas nas suas relações com o poder temporal que fica impedido de impor aos cidadãos a profissão de qualquer ortodoxia confessional. Nesse sentido, a reivindicação da laicidade não interessa apenas às correntes laicistas mas, também, às confissões religiosas minoritárias que encontram, no Estado Laico, as garantias para o exercício da liberdade religiosa”.
Ora se o ideal laico pressupõe nada menos do que isto, também é verdade que – e é aqui que começam os problemas – não pressupõe nada mais do que isto. Secularismo não é, pois, sinónimo de anticlericalismo nem de ateísmo de Estado. Os liberais clássicos bateram-se contra o poder absoluto das religiões, não se bateram pela abolição da religião tout court. O secularismo não tem como objetivo “limpar o Mundo de qualquer vestígio religioso”.
O secularismo não significa a abolição nem o controlo de todas e quaisquer manifestações religiosas. O secularismo não é o ideal da ausência da religião em todos os domínios da vida. O secularismo pressupõe alguma “privatização” da religião (ou, pelo menos, a limitação das suas manifestações públicas que ofendam direitos fundamentais). Mas não pressupõe, seguramente, a passagem da religião ao estado de clandestinidade. Nesse sentido, o secularismo não tem necessariamente de banir a religião de todas as instituições públicas; basta-lhe facultar o acesso a todas as religiões com uma relevância social mínima. O secularismo não é “uma militância dedicada à agressão explícita e sistemática do religioso”. O secularismo não é um eufemismo para esconder uma aversão profunda à religião em geral ou ao catolicismo em particular. O secularismo não é, como lhe chamou Victoria Camps, “o ateísmo de bandeira que não tolera a convivência com a religião e que considera que o religioso é, por si mesmo e sempre, prejudicial para a vida em comum”. O verdadeiro secularismo não é, por maioria de razão, “uma confissão mais, (muito menos) a única confissão verdadeira por se considerar a mais científica e racional”.
Infelizmente, é desta visão deturpada do ideal laico de que falamos quando queremos impedir o Presidente francês de se dirigir aos católicos franceses quando desaparece em chamas (também) um importante local de culto católico. É essa visão deturpada que está subjacente à ideia de proibir que os funcionários públicos do Quebeque, sejam eles muçulmanos ou hindus, fiquem proibidos de usar qualquer símbolo religioso.
Eu, ateu, me confesso: dispenso o proselitismo azedo e intolerante de uns e de outros. Trocava-o de bom grado por um mínimo de bom senso.
(Artigo de opinião publicado na VISÃO 1364 de 25 de abril)