A polarização moral do debate político, em que dois lados se confrontam na presunção de que representam a única verdade politicamente aceitável, é um dos traços característicos destes tempos. Já aqui escrevi sobre isso, sobre a forma como essa polarização está a isolar os moderados, sobre a insidiosa pressão para a radicalização, para o abandono da ideia de reconhecimento da legitimidade do outro – um reconhecimento sem o qual a democracia se esboroa.
Os moderados são os novos apátridas, escrevi, e não encontro melhor descrição para este tempo, o tempo em que, de um lado e de outro, nos tentam convencer de que estamos numa batalha mortal, fatal, em que só um lado pode vencer: uma batalha, onde não há lugar para consenso nem para ponderação, como se apenas nos restasse optar por um dos lados e, aí, juntar a nossa força ao esmagamento do lado contrário.
Porque é isto que nos dizem, que me dizem, vezes sem conta, cada vez com mais agressividade, confundindo ponderação com fraqueza, moderação com tibieza, democracia com colaboracionismo. Ouvi isto quando rejeitei Bolsonaro, quando rejeitei Orbán, quando me recusei a entrar no coro dos ofendidos com a ideia de respeito pelas minorias. E ouvirei mais vezes, porque a estratégia dessa suposta direita musculada, cheia de testosterona, que se julga única, legítima, verdadeira, passa por fazer de qualquer questão, de qualquer assunto, um caso de fim de civilização, um choque entre o bem e o mal, uma opção derradeira, binária.
Tudo lhes serve para polarizar, para encostar um dedo acusador e perguntar de que lado somos, como se criticar Trump fosse abraçar Fidel, como se recusar Orbán fosse defender Maduro, como se o mundo se reduzisse a essas opções.
E, partindo de uma justíssima recusa do politicamente correto, cavalgam a imposição de um novo código, que é o do combate ao marxismo cultural. A conversa do marxismo cultural não é senão a substituição de um politicamente correto por outro, e que serve, como aquele, para perseguir, criticar, isolar quem ousa sair do cânone. Marxismo cultural, gritam, ao menor sinal, ao menor gesto, apontando, julgando: se não concordas connosco, és um marxista.
A ignorância desse estilo de acusações é gritante, como se à democracia liberal, a minha, não lhe restasse senão deitar-se com os seus doces inimigos para acordar aniquilada. Como se não nos restasse alternativa senão aceitar ataques à liberdade de expressão, à liberdade académica, à liberdade religiosa, à liberdade política, tudo em nome da aniquilação da conspiração esquerdista ou judaica ou globalista ou vinda de um qualquer outro delírio que sirva o propósito polarizador. A lista de desculpas para aceitar esses ataques está a engrossar, e é natural que engrosse, porque a redução do mundo a dois polos a isso obriga, mas não deixo de me espantar com a facilidade com que a gente aceita a ideia de que é legítimo encerrar universidades se o propósito for o de combater o marxismo cultural.
A manipulação dos conceitos que essa direita faz é manifesta, como se houvesse qualquer coisa de cristão nessa ideia de que há pessoas superiores a outras, de que há coisas mais importantes do que o amor ao outro, de que há nas escrituras uma instrução codificada para discriminar, violentar, agredir. Como se fosse possível aceitar que um partido, uma associação, uma pessoa qualquer, pudesse arrogar-se de uma autoridade superior à da própria igreja ou até substituir-se a ela, quando esta dá ares colaboracionistas, distribuindo certificados de pureza cristã, julgando, apontando.
Não embarco nessa chantagem e não me custa ficar sozinho nessa recusa, se necessário for, porque não prescindo da liberdade como valor primeiro da dignidade da pessoa humana. E é nesse valor que encontro toda a sustentação de que preciso para combater os avanços da extrema-esquerda totalitária, que adora os seus próprios Bolsonaros e Orbáns, que se deita com ditadores e acorda com torcionários, que se entusiasma com a ideia de me dizer o que devo pensar, o que devo comer, o que devo ler, com quem me devo dar ou deitar.
A defesa da liberdade basta-me, e bastou-me sempre, para derrotar projetos coletivistas. Sempre. Basta ouvir Thatcher ou Reagan ou o Papa João Paulo II, para o perceber. Prefiro ficar com essas referências a guardar retratos de Orbán na carteira. A um coletivismo de esquerda não respondo com um coletivismo de direita, ao identitarismo de esquerda não respondo com um de direita.
Sei que serei chamado idiota útil por escrever isto. Mas o engraçado é que essa direita armada em musculada ainda não se apercebeu de que é ela o seguro de vida da extrema-esquerda. A extrema-esquerda precisa, deseja, chama, até, pela direita musculada, para justificar a sua existência; o que na prática transforma tal direita, e não deixa de ser irónico, na idiota útil disto tudo.