Primeiro, foi o clamor pela escolha da RTP da personalidade internacional do ano, por ela ter recaído em Jair Bolsonaro. Depois, o rugido por causa da pergunta da TVI, num programa de entretenimento, sobre “se precisaremos de um novo Salazar”. As reações incendiadas, no primeiro caso são um exemplo clássico de “morte ao mensageiro”. No segundo, a indignação tem sobretudo a ver com um motivo que ninguém confessa: o medo da resposta.
Ora, do que precisamos é de ter mais calma. Na verdade, a indignação dirigida a um determinado facto, acontecimento, iniciativa ou declaração tem como único efeito potenciar o impacto e a propagação desse acontecimento, facto, iniciativa ou declaração. Numa entrevista recente, Jaime Nogueira Pinto, assumido admirador de Salazar, recordava o boicote recente à sua conferência na Universidade Nova: “Acabei por publicá-la no Expresso. E o que seria escutado por escassas dezenas de pessoas foi lido por alguns milhares…”.
Mas analisemos os dois casos vertentes.
A escolha de figura do ano, feita, no final de cada período anual, por alguns órgãos de comunicação social, um pouco por todo o mundo, não é um prémio nem é uma distinção. É uma constatação de facto sobre o impacto mediático, social, político, económico, desportivo, cultural ou de qualquer outra natureza que tem por protagonista um indivíduo. Hitler foi figura internacional do ano, para a revista TIME, em 1938. Estaline foi-o, para mesma publicação, por duas vezes. Saddam Hussein também teve esse destaque. Pelo impacto duradouro do seu regime, quer na política, quer nos costumes, quer na mentalidade portuguesa, impacto que sobreviveu ao próprio Estado Novo e ainda se sente, Salazar seria um óbvio candidato a figura nacional do século XX, talvez só destronável por Mário Soares. E isso nada tem a ver com o concurso popular que elegeu “o maior português de sempre”…
Mas já vamos a Salazar. No caso de Bolsonaro, é quase uma questão de audiometria: quantas machetes jornalísticas protagonizou? Quantas aberturas de telejornais? Quantos debates políticos, análises académicas ou discussões nas redes sociais? Bolsonaro não é a figura, é o fenómeno. Como foi possível que alguém com aquelas características tivesse ganho umas eleições num dos países mais populosos do mundo? E que esta seja justificada por pessoas inteligentes, algumas da própria esquerda moderada brasileira? Há vários critérios para definir uma figura do ano, e, neles, cabem as boas e as más razões. Tivesse o norte coreano Kim Jon-un disparado um míssil contra Washington e talvez fosse ele…
O tema Jair Bolsonaro, pela sua repercussão e continuidade no tempo, ao longo de todo o ano de 2018, faz dele um óbvio candidato a figura internacional do ano. A RTP (tal como a TSF ou o JN) foram apenas os mensageiros. E custa a crer que figuras esclarecidas (estou a lembrar-me do politólogo e sociólogo André Freire), com a sua experiência de presença nos media, confundam uma escolha jornalística com um galardão – e queiram linchar o mensageiro.
A participação do cadastrado de extrema direita Mário Machado no programa de Manuel Luís Goucha, em que se discutia a necessidade, ou não, de “um novo Salazar em Portugal” é, antes de mais, um erro de casting. Defendendo e praticando o que Machado defende e pratica, ele, sob o regime de Salazar, passaria muito mais tempo atrás das grades do que em democracia. É o último a poder ser tido como uma espécie de representante das práticas salazaristas. E não me refiro à substância violenta dos seus atos, a posse de arma proibida e o seu uso ou outros delitos comuns por que tenha sido condenado – embora nós conheçamos a obsessão do Estado Novo pela manutenção da ordem pública, a qualquer preço. As motivações racistas, essas sim, seriam uma grande ameaça para a política de Salazar. É verdade que o discurso integrador dos “pretinhos” tinha, em Salazar, uma motivação hipócrita. Ele era inspirado na necessidade de a ditadura se apresentar, perante a ordem internacional, como um regime anti-racista – Portugal existia do Minho a Timor e todos os nascidos nos respetivos territórios eram portugueses, lembram-se?… Tudo para justificar a posse das colónias, a guerra dita “ultramarina” e a continuação da opressão política sobre os povos africanos de expressão portuguesa. Mas também é verdade que o nacionalismo de Salazar, ao contrário do de Hitler, de Mussolini e, até, de Franco, não tinha por base uma motivação de superioridade de raça. Basta comparar as origens pagãs dos ditadores italiano e alemão com o início de militância católica do seu congénere português. E também não tinha uma raiz militarista, como a ditadura de Franco, ancorada, primeiro, num férreo controlo das populações marroquinas sob o jugo espanhol e, depois, na Guerra Civil. Por muito menos ações do que as de Mário Machado, perseguiu Salazar, e depois remeteu para o exílio, o seu “desafiador” fascista Rolão Preto. Salazar execrava os rituais e a iconografia fascista e só a tolerou na Mocidade Portuguesa como uma concessão simbólica mas inócua. Usava botas ortopédicas para corrigir o defeito num pé e nunca o imaginaríamos a calçar – ou a levar a sério alguém que calçasse – Doc Martens. Pensar a TVI que, através de Mário Machado, estava a dar voz ao salazarismo, é fruto de uma confrangedora ignorância, demonstrada pela produção do programa. Pensar Mário Machado que é um salazarista, é fruto da estupidez própria de um skinhead. E pensarem os críticos do programa que tudo isto poderia ser uma tentativa de remake do salazarismo, é, para além de igual demonstração de ignorância, uma prova de histeria injustificável – e que, voltando ao início deste texto, só poderá potenciar a mensagem que se julga combater.
O facto de o inquérito sobre a necessidade de um novo Salazar – talvez ao contrário das expetativas de quem o promoveu… – ter dado um rotundo “não” demonstra a sabedoria tranquila da audiência, em contraste com a fogosidade ignorante do facebook. Mas tanto escarcéu à volta da pergunta só revela… o medo da resposta. Ora, não temos de ter medo.