Os problemas por que passamos e os planos para os debelar, a inflação que nos come o valor do dinheiro, a guerra na Ucrânia que é tão nossa como de quem a combate, foram deixando passar uma data que merecia um destaque que não teve por cá, sendo que o pouco que teve foi pelas piores razões: os 200 anos da independência do Brasil.
Tenho mil e uma cartas de amor para escrever ao Brasil e cada uma delas tem mil e uma razões para o provar.
A banda sonora da minha vida está cheia do mais lindo sotaque que o português tem. Não há país no mundo que tenha mais riqueza musical, instrumentistas mais virtuosos, cantores tão deslumbrantes, letristas tão brilhantes. Neste espaço não cabiam os nomes dos homens e mulheres que cantaram e cantam para mim, que me embalaram os amores, com quem faço coro, com quem danço, imaginando-me a desfilar vestido do azul e branco da Portela. Diz que não há coisa mais bela.
Na lista dos meus escritores favoritos estão muitos brasileiros, opinando eu na minha condição de especialista em tocar campainhas que o Machado de Assis é o mais brilhante escritor de língua portuguesa e o Rubem Braga o melhor cronista de todos os tempos e de todas as línguas. Já agora, a vida e a história do marido da tripeira Carolina Augusta – mulato, neto de escravos e filho de uma lavadeira portuguesa e de um negro, primeiro presidente da Academia Brasileira de Letras – é uma metáfora benigna, para lá da literatura, do que podia ter corrido bem na sociedade brasileira. Não correu.
Vou – mesmo sendo também pedaços de mim – esquecer os atores, o teatro, o futebol, os arquitetos, os pensadores e os não sei quantos es ou ous que fazem do Brasil um imenso mar de talento em tantas, tantas áreas.
Toda esta gente escreve e canta em português. Um português que vai crescendo, que se vai modificando e, as coisas são como são, vai sendo moldado por quem mais o fala e por quem mais o escreve. Já há muito me passou a raiva de chegar ao Brasil e as pessoas terem dificuldade em perceber-me e eu compreender rigorosamente tudo o que elas dizem. É a vida, o processo natural, tentar prender a língua é como tentar prender o vento. Por muito que nos custe, o futuro do português está no Brasil e serão os brasileiros a moldá-lo.
Antes que se levante o orgulho luso e me espadeire ou me lance da varanda da câmara de Lisboa, devo dizer que isso em nada impede de falarmos como falamos ou de escrevermos como escrevemos. Lá está, as línguas são processos dinâmicos e nós estaremos cá ou noutro lado qualquer enquanto o mundo for mundo ou, pelo menos, enquanto a nossa cultura perdurar.
Já não sei quem o disse, mas tinha toda a razão: a maior dádiva de Portugal ao mundo foi o Brasil – e quem conhece não esquece que Brasil é com s. E, passe a imodéstia, demos muitos mundos ao mundo, mas nenhum como a terra de Vera Cruz.
Aquele gigante, aquele imenso continente ficar unido sob uma mesma bandeira, ser dos maiores países do mundo foi obra sobretudo de portugueses. E dentre eles o rei que, tomando banho ou não, colou os pedaços de cem Brasis, fê-lo crescer em todos os sentidos e em todas as áreas, amou-o como ninguém e ainda lhe deu o filho: el-rei Dom João VI que não teve pejo em fazer uma cidade num outro continente capital de Portugal.
Pois é, meus queridos irmãos brasileiros, nunca um pai deixou uma herança tão valiosa a um filho. Do Rio Grande do Sul a Roraima, da Paraíba ao Acre, com recursos naturais como nenhum outro, com o pulmão do mundo, com a maior diversidade que há, com as mais lindas cidades do universo (ai Rio de Janeiro, princesa das cidades).
O que se faz com as heranças é com os herdeiros, mas ninguém sofre mais com os filhos do que os pais. Eu falo por mim, ver o Brasil há tanto tempo adiado, ver a pobreza asfixiante, a chocante desigualdade, a criminalidade, o aberrante racismo, a corrupção como modo de vida, a ignorância no poder magoa-me mais do que qualquer sítio do mundo, com as exceções facilmente imagináveis, Angola, Moçambique, Cabo Verde, Guiné-Bissau e sim os nossos próprios problemas. Mais, porque o Brasil não pode ser assim, é demasiado rico, tem demasiada boa gente, nenhum deus quis que tivesse esses dramas. Mais, o povo brasileiro não merece.
Eu sei. Conheço aquela conversa “a culpa é dos portugueses, se tivéssemos sido colonizados por outros…”. Lembro-me de me irritar e responder que os meus avós tinham ficado em Portugal, portanto a culpa era dos avozinhos de V. Exa. Mas foi tão parvo, eu como os que diziam aquilo. O desespero faz dizer coisas sem sentido e nem dois séculos mataram o olhar adolescente do filho Brasil para o pai Portugal. E, sim, o amor não se troca, como escrevia o Carlos Drummond de Andrade.
Queria muito mais espaço e só um bocadinho de talento para poder exprimir o meu profundo amor pelo Brasil, mas, pronto, mando novamente um cheirinho de alecrim.
*Título roubado à canção Carinhoso, escrita por Pixinguinha e Braguinha.
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