Eram três da manhã quando a campainha tocou. Fui o primeiro a acordar. Pulei da cama e fui à janela saber quem era àquela hora. Debrucei-me no parapeito e surpreendi-me. Um jipe da tropa cheio de militares envergando camuflados e um carro da polícia estavam estacionados frente à nossa porta, o número 17 da rua do Castilho, em Ponta Delgada. Vinham prender o meu pai que, juntamente com uns quantos, três dias atrás, a 6 de junho de 1975, encabeçara uma manifestação de muitos milhares de açorianos descontentes com a política gonçalvista e com a reforma agrária, que os comunistas no poder progressivamente implementavam no continente português, na Madeira e nos Açores.
Abri-lhes a porta, perguntaram-me onde ficava o quarto dos meus pais. Disse-lhes e desataram em correria louca pela escada, abriram-lhes a porta de rompante, entraram e deram voz de prisão ao meu pai. “Vista-se e faça a mala. Está preso! ” Assim sem mais. E o meu pai vestiu-se diante dos militares, connosco, os seis filhos e a minha avó paterna, à porta, a chorar. A minha querida mãe, sentada na cama, ainda com a roupa por cima, comovida e desalentada, também chorava. Éramos seis jovens filhos, quatro raparigas e dois rapazes que assistiam a esses momentos trágicos e aterradores. Ver um pai ser arrancado de casa de madrugada é um momento que não se esquece nunca. Tiraram-nos o nosso pai … E sobreveio um sentimento de orfandade, logo seguido de desespero. A minha avó perdeu a fala, que só muitas horas depois recuperou. Mesmo assim teve forças para abraçar e beijar o filho à despedida.
Decorria o período revolucionário português, prepotente e intolerante. Ou és por nós ou contra nós!
Esta ação prepotente do Estado português levou a um sentimento de divisionismo. Era imperioso abandonar o continente português, a nossa amada pátria, fosse pela via da declaração unilateral de independência, ou pela implementação de uma autonomia progressiva, que foi o que acabou por acontecer aos Açores, sob a liderança de João Bosco Mota Amaral. E o arquipélago da Madeira seguiu as pisadas do congénere açoriano.
A FLA – Frente de Libertação dos Açores, iniciou a resistência. Os confrontos entre a população e os militares sucediam-se. Os dias eram de congeminação e as noites de revolta e ação. O ambiente era de suspeição, de afoiteza, de perseguições, traição e medo.
Hoje, embora passados quarenta e quatro anos, persistem os desacomodados e resistentes. O 6 de junho entranhou-se-lhes no corpo e ainda lhes percorre as veias e a alma toda.
Carlos Melo Bento, um ilustre advogado micaelense, um dos 35 presos daquela noite fatídica, fala-nos, na primeira pessoa, desse tempo que o tempo jamais conseguirá apagar da memória coletiva açoriana.
Uma grave crise económica, que atingiu a nossa pecuária, a indústria madeireira e o comércio local …
Carlos Melo Bento, independentista convicto, atribui a revolução do 6 de junho, advinda da célebre manifestação acontecida em Ponta Delgada de que resultou a destituição de funções do então Governador Civil, Dr. Borges Coutinho, “ao rumo do País, que resvalava para o comunismo assustador, para o antiamericanismo que enfureceu a nossa diáspora americana, mais numerosa que a população açoriana residente no Arquipélago, e ainda à sensação de impotência perante as independências ultramarinas entregues aos movimentos dependentes da União Soviética e de Cuba, e por fim às agressões insensatas divulgadas pela rádio pública contra pessoas sérias e bem conceituadas entre nós, feitas por uma minoria ridícula de recém-convertidos ao novo regime que, por sua vez, estremecia sob os desmandos caóticos do dissimulado Vasco Gonçalves.”
Atribui ainda o rumo dos acontecimentos a “uma grave crise económica, que atingiu a nossa pecuária, a indústria madeireira e o comércio local, afetado pelos disparates vindos do continente, mas “justificados” pelo nosso governador civil nomeado por Lisboa, que enxofraram os ânimos a ponto de tornarem inevitável uma manifestação de protesto. Uma manifestação como as que todos os dias ocorriam em Lisboa, não uma revolução. Esta só surge depois das prisões ilegais e brutais que ocorreram 3 dias depois.”
Esclarece ainda o advogado que “ninguém expulsou o governador civil, Dr. Borges Coutinho, este é que se demitiu pressionado pelo ambicioso general Altino Pinto de Magalhães e pelas críticas dos manifestantes.”
Mota Amaral nunca foi um revolucionário, antes um homem de consensos para conseguir progresso e paz social
Houve desvios ao rumo independentista vindos de Mota Amaral, para uma segunda via, a autonomista, que se lhe afigurava bem mais segura e consensual para uma negociação política frutuosa com Lisboa. Mota Amaral desde o início sempre quis a autonomia?
Carlos Melo Bento responde-nos que “Mota Amaral nunca foi um revolucionário, antes um homem de consensos para conseguir progresso e paz social.” E precisou que “quando as coisas em Portugal estiveram muito tremidas, com os americanos a sugerirem a “teoria da vacina”, pela qual deveria deixar-se o país
ir para o comunismo para “vacinar” a Europa ocidental contra essa política falida, o pai da Autonomia Constitucional aproximou-se dos independentistas. Quando as coisas, mercê de Melo Antunes e do seu grupo, encaminharam Portugal para uma democracia ocidental, Mota Amaral, bem apoiado por Sá Carneiro, conseguiu um largo consenso (mesmo entre os independentistas) e, sempre admitindo o direito destes defenderem a sua solução para os Açores, ajudou a colocar a Autonomia na Constituição. E foi tão longe quanto o centralismo vesgo deixou.”
Os Açores têm muito mais possibilidades de se manterem independentes que Cabo Verde e S. Tomé e Príncipe
Os Açores, sendo independentes, teriam possibilidades de se manter economicamente sem a enorme fatia do bolo do Orçamento de Estado que recebemos? Não considera utópico pensar-se que esta região se bastaria a si própria sem vender a sua independência a uma qualquer potência? … E com os americanos à espreita por via dos seus interesses geoestratégicos nomeadamente na Base Aérea das Lajes?
O independentista Melo Bento, neste particular, advoga que “os Açores têm muito mais possibilidades de se manterem independentes que Cabo Verde e S. Tomé e Príncipe, países que pertencem também, como nós, à portugalidade insular. A ajuda do orçamento de Estado – defende – são meras devoluções de explorações históricas comprovadas.” E o advogado aponta o dedo à nação: “Se medíssemos a independência por esses parâmetros, Portugal seria também inviável e isso não acontece porque há valores muito mais fortes que os económicos. Nunca pensámos em vender a nossa Pátria a potências estrangeiras (incluindo a americana) e sempre advogámos um relacionamento privilegiado com Portugal e com todos os outros povos de língua portuguesa. As coisas manter-se-iam exatamente como estão hoje, só que quem nos governaria seríamos nós e não os forasteiros.” E o entrevistado, ele próprio, questiona o entrevistador: “Acha que é legítimo não nos podermos reunir politicamente em partidos regionais, buscando soluções democráticas para a região autónoma e o seu povo? Que raio de autonomia é esta que não é definida pelos próprios autónomos e tem que obedecer às regras definidas pelos centralistas estranhos à região?”
E como subsistiria o arquipélago? Houve estudos económicos sérios sobre esta matéria? – perguntámos ao advogado, que prontamente nos respondeu ter havido “diversos estudos tendo em conta o desnorte existente no continente da república na época e quase todos eles eram mais favoráveis à solução independentista do que manter-se o rumo que as coisas seguiam.” Condescende, todavia, que “houve muita utopia”, mas, defende, inabalável, que “tudo era melhor que o comunismo em que o país na altura estava atolado. Tínhamos consciência que os primeiros tempos seriam dramáticos e que muitos de nós não sobreviveriam, mas estivemos dispostos a correr os riscos que outros também correram para se emancipar.”
Havia gente com armas como legítima defesa contra as violências ilegais de que fomos vítimas por parte daqueles que, sem legitimidade, ocupavam o poder
Existiu um braço armado da FLA? Se sim, porquê e quem o comandou? Houve uma lista de gente a abater? – questionámos o advogado independentista, um homem na altura poderoso no movimento independentista açoriano.
Melo Bento confessa que “havia gente com armas como legítima defesa contra as violências ilegais de que fomos vítimas por parte daqueles que, sem legitimidade, ocupavam o poder, armas que ajudaram a acabar com essas violências ilegais e a pôr os adversários em sentido, como de facto aconteceu. Nunca houve, que se saiba, uma lista de gente a abater feita por nós, embora um conjunto de nomes tenha sido entregue nos Estados Unidos a José de Almeida (líder histórico da FLA – Frente de Libertação dos Açores). Mas o facto de nomes como o meu constarem desse rol permitiu provar que se tratava de contrainformação divulgada pelos nossos inimigos e aquela ficou a constar dos documentos a guardar oportunamente na nossa Torre do Tombo…”
Quando vi militares armados até aos dentes, deitados no chão no Campo de S. Francisco, temi pela vida
Quisemos saber mais das prisões acontecidas e Melo Bento reviveu a sua sombria madrugada: “Às duas da manhã, bateram fortemente à porta da minha casa. Levantei-me e fui abrir. Muitos soldados nervosos, armados de G3, chefiados por um “sargento músico” com um papel na mão. Vinha-me convocar em nome de um general (Altino Pinto de Magalhães) para ir prestar declarações ao quartel-general. Admirei-me da hora mas como não tinha participado na manifestação não desconfiei da má-fé do convite, embora o meu irmão mais novo, que Deus tem, me tivesse dito que constava que eu iria ser preso. Ri-me e disse-lhe que não podia ser porque não participara na manifestação, que fora legal e pacífica, pelo que julguei tratar-se de rumores infundados. Enganei-me. Não me deixou o verdugo subir sozinho ao meu quarto onde dormiam a minha mulher e quatro crianças de 3 a 9 anos. Avançou pelo quarto dentro com a minha mulher a falar nervosamente, indignada que estava com a bestialidade do procedimento, com as crianças amedrontadas e eu, muito amargurado, mas a aconselhar calma, que tudo se iria esclarecer. Vesti-me perante os soldados, que tremiam com as armas na mão, e temi que algum, com os nervos, disparasse. Quando o sargento me aconselhou a levar a máquina de barbear percebi que o meu irmão tinha razão e quando vi militares armados até aos dentes, deitados no chão, no Campo de S. Francisco, temi pela vida. Rezei. Só descansei quando me puseram dentro dum barco faroleiro onde já estavam pessoas amigas e sérias que tinham sido presas da mesma forma. Depois, o barco zarpou para rumo desconhecido no meio de um mar revolto que me deixou arrasado, pois não sou bom marinheiro. Quando chegámos a Angra, esperavam-nos camiões militares que nos levaram para a cadeia da cidade, onde nos esperavam uns tantos energúmenos que nos insultaram, chamando-nos canalhas e outros mimos. Magoou-me a pronúncia e lembrei-me de Cristo, o que me serenou. Colocaram-me numa cela, sozinho, e começou um calvário de 15 dias de angústia e revolta. Ganhei 34 bons amigos. Dos que nos guardavam, sempre armados, houve gente boa e uma peste de um tal Gama, alferes miliciano (de engenharia) que nos tratou com maldade e cobardia. Por outro lado, o Aspirante Bettencourt, penso que do Pico, foi um príncipe que sempre nos respeitou e ajudou no que pôde. Os soldados eram rapazes novos e mais espantados e curiosos com a situação do que empenhados na triste missão de que os incumbiram. Um mestre pintor terceirense, sessentão, que para ali foi enviado para tornar as instalações menos lúgubres, fez apreciações muito elogiosas a nosso respeito, considerando-nos pessoas educadas e respeitáveis. Quando deixaram, recebemos imensas visitas, de que destaco a do Dr. Álvaro Monjardino, colega e amigo que sempre admirei. Entre nós falávamos de política e da angústia do futuro das nossas vidas, pois vivíamos todos só do nosso trabalho e esse pouco estava em perigo. Animávamo-nos uns aos outros, sendo os mais fortes o Dr. Abel Carreiro e o Victor Cruz. A comida era fornecida pela tropa e não era má, embora a higiene deixasse um pouco a desejar. Mas quem é que pensava em comida naquela ignominiosa situação. A nossa inquirição foi uma farsa inominável. Deus lhes perdoe.”
Logo a seguir à minha prisão, tiveram a fineza de cortar o telefone à minha mulher, que ficou sozinha e desesperada com as crianças
E como foi o dia da saída?
“Foi feita por turnos e em dias diferentes” – revelou. “Levaram-nos de camião para o aeroporto das Lages e meteram-me num avião da SATA, então pilotado pelo Comandante Ferreira. Em Ponta Delgada, esperava-me o meu querido pai com profunda tristeza na alma. Ao dirigirmo-nos para a sua casa, as pessoas na rua reconheciam-me e saudavam-me com alegria. Comecei a ficar feliz outra vez.”
E com que espírito regressaram à liberdade? – perguntei.
“Os outros não sei. Eu regressei com o doentio e pouco cristão espírito de vingança que levou muitos anos a passar. Logo a seguir à minha prisão, tiveram a fineza de cortar o telefone à minha mulher, que ficou sozinha e desesperada com as crianças, até que o meu pai, avisado por amigos, os foi buscar para perto de si.”
A independência de um território, separado, como o nosso, não é uma utopia, é uma inevitabilidade
Há quem defenda que a independência morreu definitivamente e que hoje não passa de uma utopia, concorrendo para essa tese a consolidação da autonomia constitucional. Mas o advogado independentista não verga e defende que ” a independência de um território, separado, como o nosso, não é uma utopia, é uma inevitabilidade, pelo menos a partir do fim do Império que ajudámos a criar e a manter. Deve ocorrer com Portugal, Pátria querida e imortal, como escrevi em 1974; ninguém governa bem à distância povos que não conhece e a que não pertence de alma e coração. Só nós, açorianos, nos podemos governar como deve ser. Vejam o Canadá, criado pelos americanos que não quiseram a independência. Não cortaram laços com a Mãe-Pátria, mas governam-se como se fossem independentes. Os ingleses que para lá vão tornam-se canadianos, assim como os canadianos que vão para a Inglaterra se tornam ingleses de gema. O nosso sangue português não foi esbatido pela distância e pelo abandono de séculos, mas não permite que ninguém de fora nos governe. Para cá do Marão mandam os que cá estão.”
Olhei-o pela última vez, num triste 23 de maio, há cinco anos. Descansava, de fato preto, na urna. Bonito, como sempre foi. Até esboçando um ligeiro sorriso que trouxe dos últimos segundos.
Pai, o que levas na morte que trouxeste na vida? Não me respondeu com a boca. A morte impediu-o. Respondeu-me com a alma: ” Levo-me para longe dos grilhões que reprimem a liberdade.”