A chaminé da casa ao lado debitava um fumo que não tinha odores a grelhados nem a assados de carne ou de peixe. Nem sequer a pão cozido. Dali emanava apenas cheiro simples de lenha queimada por lume que só aquece gente, mas que cose pouco, que alimenta nada, porque os rendimentos são parcos e às vezes nenhuns.
Por essa altura natalícia – não falhava – deslocava-me àquela casa de trinta metros quadrados, dava cinco toques codificados, três seguidos e dois espaçados, na frágil porta que um minuto depois se abria num ranger arrastado e pesado de anos a sorver ar do mar para mostrar um homem velho exibindo um esqueleto largo quase sob a pele, adivinhando-se-lhe um passado de vida longa e penosa de trabalho árduo na cara gretada por frios gélidos da nortada atlântica e da Serra Gorda. Tomé tinha um aspeto acabado mas uns olhos azúis vistosos. Imediatamente atrás dele vinha Noémia, a sua companheira, agarrando-lhe o braço forte, porque já quase cega, mesmo assim dona de um sorriso natural e bonito.
– “Cá está o vizinho com os seus chocolates de Natal. Não era preciso!” – rezava Tomé, o andarilho, como por ali era conhecido, agradecido que estava e sem conseguir disfarçar alguma emoção com a visita e a atenção. E convidava-me a entrar e a sentar-me no velho sofá posicionado de costas para uma parede húmida decorada com uma grande cruz de Cristo e ao lado de uma mesinha velha carcomida pela traça decorada com uma vela acesa já meio queimada que fazia de árvore de Natal. A intenção da visita era levar um pouco de calor humano àquele casal, o mais idoso dos poços das Capelas, no norte da ilha de São Miguel.
Aquando das minhas visitas anuais, Tomé sentia necessidade de reeditar o passado difícil de toda uma vida dos dois e da prole, enquanto Noémia o olhava atentamente e ia assentindo com a cabeça, disfarçando olhares ainda apaixonados embora vindos de uns olhos quase cegos.
O casal açoriano das Capelas teve oito filhos, todos nados e criados no pequeno casebre de pedra construído ao centímetro e à mão e há décadas pelo próprio.
Contava tio Tomé, como amigavelmente o chamava, que perdeu a conta das vezes que subiu e desceu a corta-mato e a pé descalço as encostas da Serra Gorda para ir vender peixe à cidade acartando-o às costas em cestos de vimes pendurados nas pontas de uma vara de criptoméria, a ancestral madeira da ilha, daí apelidarem-no de andarilho. Levantava-se às três da manhã para ir a pé ao porto de Rabo de Peixe comprar o pescado e, após longa e fatigante caminhada, vendia-o pelas ruas de Ponta Delgada para depois regressar às Capelas. Chegado a casa, deitava a mão à enxada e “lá ia sachar terras dos senhores até ao lusco-fusco”, como contava na sua voz cava, rouca e trémula. “E houve muitos dias em que só os “petxenos” é que comiam … e era pão migado em tigelas de leite, sem “açucre” … sem nada. E eu e Noémia – ó tantas vezes – íamos de barriga vazia para a cama e “mortinhos” de fome. Deus sabe! – recordava amargamente o patriarca.
O casal não comia um chocolate da caixa que lhes oferecia sem primeiro generosamente me convidarem a com eles partilhar as guloseimas. E se me escusava, recusavam-se a comer. Partilhar era – porque sempre assim foi naquela humilde família açoriana – a palavra de ordem.
Hoje, os Natais dos Poços não são mais os mesmos. Ficaram mais pobres por essa pobreza desaparecida. Os andarilhos também morrem. E morreram, e com eles a casa ao lado. A porta já não range mais e a relva cresce triste e pálida no quintal.
A beleza desta quadra, em geral faustosa, pode bem estar em trinta metros quadrados na fragilidade de uma vela meio queimada a fazer de árvore de Natal, no meio do Atlântico Norte, nos Poços das Capelas da ilha açoriana de São Miguel.