Este texto pretende apresentar um par de ideias concretas sobre a Visão Estratégica para o Plano de Recuperação Económica de Portugal 2020-2030 recentemente levadas a debate público pelo Professor António Costa Silva e responder ao convite expresso por ideias e propostas deixado pelo Governo no sentido de dotar de um corpo prático o documento estratégico apresentado. Estas sugestões têm como base o meu recente artigo na Visão (bloco a bloco a coisa avança), que procurou relevar as referências ao uso da tecnologia blockchain no texto agora em debate público e foram entregues à equipa que está a recolher estas propostas.
Na sua Visão Estratégica, o professor António Costa Silva colocou a tecnologia blockchain no centro da revolução 4.0, como um dos seus pivots-base e pedra fundacional dos novos sistemas, que devem correr em tal tecnologia a bem da transparência, da imutabilidade da informação e da total rastreabilidade da mesma, e com o Estado a ser um player e stakeholder assumido, acrescentei.
Este contributo que agora circulo pretende dar mais corpo às referências de poder o Estado se assumir como ator pro-ativo na divulgação, promoção e implementação de projetos que utilizem a tecnologia blockchain como base, sugerindo que se criem as condições para que se desenvolva uma estratégia blockchain específica para o País. Esta estratégia deve ambicionar desenvolver junto do Governo a marca “CONFIA”, que mais não deve ser que proporcionar um conjunto de serviços públicos powered by blockchain. Na segunda parte dos meus comentários irei deixar um conjunto de exemplos de setores do Estado que podem ancorar projetos-piloto que explorem as vantagens e mais valias desta tecnologia.
Assim, em primeiro lugar julgo que seria importante, para dar corpo às reflexões da Visão Estratégica, que que se desenvolva uma estratégia nacional para a exploração, desenvolvimento e implementação de projectos que utilizassem a tecnologia blockchain, e que os mesmos fossem fruto de uma reflexão global sobre o País, de âmbito geral, e ao nível de cada ministério e área de intervenção da ação governativa, no sentido de identificar oportunidades concretas para a implementação destes projetos. Esta estratégia nacional deverá seguir os bons exemplos e práticas já apresentadas por instituições como a União Europeia, a Alemanha ou a Índia, ou recentemente o Estado da Califórnia. Na maioria destes casos, estes documentos foram o produto de uma colaboração franca e aberta entre entidades governamentais e/ou institucionais, empresas, startups, mundo académico e think tanks.
Devemos pretender e ambicionar recolher um conjunto de boas práticas internacionais, entender o estado da arte e o actual impacto de alguns projectos-piloto no setor privado e corporativo. Depois julgo importante identificar para cada área de ação governativa, de forma crítica e argumentada, que casos-práticos podem ser implementados, e onde, com que custos e impactos, selecionando destes quais implementar e quando. No que respeita a timings, diria que seria importante ter este trabalho preliminar concluído a tempo de qualificar devidamente o setor Estado para este conseguir aproveitar a próxima vaga de fundos europeus para promover propostas já devidamente trabalhadas. Deve ainda ser aproveitada a recente iniciativa do governo em promover um conjunto de Zonas Livres Tecnológicas para nelas se colocarem alguns destes projectos powered by blockchain, em especial os que resultem de parcerias com o setor privado.
Neste sentido, sugerimos que se constitua um grupo (steering committee Conselho consultivo) liderado por um conjunto de pessoas qualificadas e devidamente articuladas com o governo e com um grupo de consultores (internos e externos ao governo) que consigam ligar as melhores práticas empresariais com a reflexão politico-filosófica necessária para a definição de alguns conceitos e para a ágil articulação entre o setor Estado e o setor privado. Deve este grupo de trabalho levar em consideração a realidade da administração pública, os aspetos técnicos ligados à tecnologia em si e as apreciações culturais e de problemáticas de adaptação às capacidades da máquina do Estado, tomando em consideração os recursos disponíveis e a disponibilidade de assumir a importância da causa pública ficar ligada a projectos desta natureza (liderando na totalidade ou em consórcio). Esta iniciativa deverá promover parcerias publico-privadas, com a ambição de fomentar a inovação no setor Estado, promover a transparência e descentralização e proteger os consumidores, num processo aberto que deverá ter como propósito auscultar a administração pública (através de inquéritos e entrevistas, e mais tarde formação geral e específica), encorajar a polinização cruzada entre os diversos setores do Estado e o setor privado, promover a colaboração entre diversas áreas de forma a salvaguardar o papel do Estado na participação (e controlo) destes sistemas, procurando evitar situações de vendor lock-ins, ou seja, a colocação do setor Estado em situações de dependência excessiva de um único fornecedor de serviços, e de processos de centralização potencialmente excessivos e de controlo abusivo da(s) base(s) de dados.
Este Steering Committee / Conselho Consultivo deverá ser constituído por quem domine os aspetos técnicos desta tecnologia, ou seja, especialistas / senior developers / CTO’s com larga experiência em desenvolver e implementar projetos com esta base tecnológica; por quem pense e reflita nas questões gerais, éticas e políticas associadas às recentes transformações associadas à Revolução 4.0; e por um conjunto de practicioners com experiência relevante em áreas que tratem as questões específicas necessárias de levar em conta nesta fase, como são os temas da privacidade / GDPR, defesa do consumidor, finança, política (partidária), logística e grande superfícies / retalho, combustíveis, banca, cultura, ou outras áreas da economia onde se identifiquem mais valias na aplicação de sistemas que utilizem blockchain como base.
Deve esta primeira fase assumir assim uma atitude reflexiva, pró-ativa e plural, procurando capacitar os intervenientes para responder às seguintes questões: o que pode a tecnologia blockchain fazer por um determinado serviço, ou área de intervenção / ação governativa? Que problemas pode resolver? Que prós e contras existem em implementar esta tecnologia? Que melhorias se podem obter no sentido de dar mais confiança aos utilizadores dos serviços do Estado, incrementando a transparência, verificabilidade e capacidade de responsabilização (accontability) dos seus sistemas? Que uso se pode dar a smart contracts na área do Estado? Que processos podem beneficiar de tal automatização, descentralização e desintermediação? Que áreas devem ser consideradas como prioritárias para a implementação de projectos-piloto? Para que se responda eficazmente a algumas destas questões sugerimos ainda que previamente se averigue saber qual o estado de utilização de bens e recursos digitais (ou em processo de digitalização) disponíveis no setor Estado, em que áreas se trabalha com registos permanentes (mais susceptíveis de beneficiarem desta tecnologia), se a informação / data a utilizar é devidamente compatível com as disposições do RGPD ou se por outro lado as questões em torno da privacidade podem interferir com a informação a registrar na blockchain. Como importante será também saber se os reguladores e intervenientes relevantes terão capacidade para ler e escrever código (e se não dar-lhes formação especializada), apurar a importância na remoção de intermediários nos actuais processos administrativos, saber em que áreas e serviços é a “confiança” um elemento fundamental, ou saber se determinado serviço ou área de intervenção poderá beneficiar de um processo de tokenização.
Se necessário, e de forma complementar, deve ainda ser equacionada uma dimensão pedagógico-formativa especialmente dedicada à função pública, oferecendo formação a quadros selecionados da Administração central e local de forma a os capacitar no sentido de melhor saberem apreciar como pode a tecnologia blockchain melhorar os seus serviços e áreas de intervenção, garantindo neste processo que esta dinâmica institucional interaja com o ecossistema tecnológico nacional, entenda melhor como a tecnologia blockchain se pode tornar numa peça essencial na revolução 4.0 e parte integral na Economia digital do presente / futuro, e como pode blockchain ser a base tecnológica de sistemas que beneficiarão os cidadãos, as instituições e a administração pública. Esta formação poderá ser enquadrada como parte da iniciativa UpSkill, adicionando-lhe esta valência, ou desenhada especificamente para qualificar um conjunto de quadros da administração pública.
Como ponto de partida no que respeita a definições de conceitos, e utilizando para este efeito a definição avançada no recente relatório “Blockchain in California: a roadmap”, devemos referir que blockchain pode ser entendida como um domínio de tecnologia utilizado para construir sistemas descentralizados que aumentem a capacidade de verificação de informação (data) partilhada entre um grupo de participantes sem que estes tenham necessariamente qualquer relação prévia de confiança, pretendendo assim construir esta mesma relação de confiança entre as partes através de uma tecnologia imutável e encriptada. Quaisquer destes sistemas deve incluir um ou mais conjuntos de registos distribuídos (distributed ledgers) e centrais de armazenamento de informação (datastores) especializadas que providenciam de forma matematicamente verificável e encriptada um conjunto de transações registadas na base de dados. Uma Blockchain pode também incluir Contratos Inteligentes (Smart Contracts) de forma a permitir aos participantes automatizar processos comerciais / empresariais / fiscais pré-acordados. Estes smart contracts são implementados através de um software embutido nas transações registadas na base de dados, e automatizado quando verificáveis as condições codificadas e aceites entre as partes.
Com isto em mente, a tecnologia blockchain deve ser utilizada quando existe a necessidade de retirar a capacidade de um único indivíduo / instituição centralizar o controlo de bases de dados, um imperativo em áreas como o e-commerce, logística agropecuária, etc, assim contribuindo para a melhoria na confiança dos cidadãos na capacidade da administração pública gerir a Res Publica. Assume-se também uma relação direta entre a desmaterialização processual e modelos sustentabilidade / SDG’s – ODS e a importância, política, de se reflectir sobre o papel do Estado como regulador, actor e stakeholder na economia; bem como as vantagens da desintermediação e descentralização de algumas dinâmicas processuais, sem descurar as necessidades de salvaguardar a inter-operacionalidade entre sistemas, as questões ligadas à segurança, à privacidade dos cidadãos e instituições, a capacidade de auditoria e gestão de dados, e de escala de sistemas (scalability), naturalmente tendo em atenção as questões éticas relacionadas com os impactos sociais desta tecnologia, salvaguardando politicas ativas de justiça social, anti-discriminação, equidade, acessibilidade, confiança, transparência e sustentabilidade.
No texto que publiquei na Visão já tínha feito referência a um conjunto de setores onde pode o Estado tomar a liderança no que respeita a promoção de projecto-piloto que utilizem a tecnologia blockchain. O setor das matérias primas foi identificado em concreto na Visão Estratégica 2020 – 2030, agora em debate, ao relevar-se a importância de colocar numa blockchain a informação relativa à extração, tratamento e comercialização do Lítio. Naturalmente que esta proposta pode, e deve, ser alargada a um outro conjunto de matérias-primas, quer em bruto como transformadas. Neste sentido, chamamos a atenção para um outro conjunto de setores, nomeadamente os com ligação à agricultura e/ou bens perecíveis, onde o consumidor, operadores, lojistas, empresas e o Estado beneficiariam substancialmente ter acesso a um conjunto de informação sobre a origem de proveniência dos consumíveis, a sua validade e trajecto logístico da colheita à prateleira, bem como um conjunto de meta-data e outra informação relevante que digitalize e simplifique um conjunto de relações comerciais e fiscais entre as partes envolvidas (aproveitando o potencial da implementação de smart contracts), ou que explore as mais valias de uma economia ou produto / bem tokenizado. Neste sentido, podemos identificar diversos setores / mercados onde se poderiam implementar projectos-piloto, desde o setor agropecuário (colocando numa blockchain um conjunto de produtos como por exemplo, frutas, legumes, frutos silvestres, etc; ou carnes várias, peixes, arroz, etc), ao das bebidas espirituosas ou do vinho (temos desenvolvimento o projecto WineTrust, plataforma blockchain para o setor vinícola), ou outros que possam ser identificados durante a fase de auscultação que aferimos ao longo do texto. O objectivo de intervir nestas áreas da economia seria sempre o de garantir a autenticidade e origem de proveniência dos produtos, assegurar a transparência processual e acesso a um conjunto de informação não corruptível ou alterada, dotar de capacidade imediata de rastreio e detecção de fraude e explorar as capacidades e potencial de implementação de smart contracts. E sugerimos que caiba ao Estado o papel de desenvolver, implementar e promover a plataforma blockchain onde esta informação seria carregada, e depois disponibilizada aos diversos utilizadores. E poder-se-ia chamar essa plataforma de «Confia».
Um outro conjunto de oportunidades junto do setor Estado / administração pública podem surgir em torno de áreas onde a desmaterialização e digitalização são ou já evidentes ou encontram-se em franco processo de abandono de formas de gestão da informação em formatos tradicionais ou papel, fruto das iniciativas em torno do Simplex ou outras. Neste sentido, poder-se-á explorar a utilização de sistemas que utilizem a tecnologia blockchain para criar e verificar que um conjunto diverso de certificações digitais provenientes do setor governamental seja colocado também, sob a marca «Confia». Como exemplos podemos antecipar a produção documental da Direção Geral de Viação, os registro de propriedade e as dinâmicas processuais ligadas ao setor do imobiliário, os registos e bases de dados das seguradoras, o registro e rastreio de armas de fogo, os serviços de notariado, os certificados de casamentos, a Informação curricular universitária proveniente do sistema de ensino, os registos médicos no contexto da epidemia do Covid-19, a certificação e registo das obras de arte do Estado, ou mesmo as questões ligadas com as bases de dados da segurança social, fundo de desemprego ou mesmo ao pagamento de impostos. Outras áreas onde se podem desenvolver projectos-piloto podem também ser a das bibliotecas e arquivos, o stor da farmacêutica em articulação com o infarmed, o setor da energia e das águas e / ou respectiva gestão de recursos hídricos e electricos e/ou da rede de veículos elétricos ou os sistemas de voto online ou sistemas de cyber-segurança. Por fim, e para não ser demasiado extenso, pode-se ainda promover soluções com base em blockchain que monitorizem e identifiquem a pegada de carbono de um conjunto de produtos / bens e tratem da respectiva compra e venda de carbono nos mercados internacionais, ou que se aplique blockchain na área da contratação pública, nas suas diversas vertentes, procurando contribuir para uma melhor transparência e integridade em processos demasiadas vezes poluídos por corrupção ou falta de verificação efectiva. Por fim, julgo ainda importante explorar-se a utilização da tecnologia blockchain como garante da segurança sistémica para questões ligadas com a identidade digital / soberania identitária própria (self-sovereign identity – SSI) e os identificadores descentralizados (decentralized identifiers – DID’s) para verificarem essa mesma identidade digital.
Como vemos, não faltam áreas onde a intervenção do Estado pode ser optimizada através da exploração da tecnologia blockchain. O conjunto de oportunidades são alargados, dispersos setorialmente, e consistentes quer com as actuais pretenções do governo em actuar na área da inovação e sustentabilidade (Zonas Livres Tecnológicas) como com a ambição recentemente demonstrada de qualificar um conjunto alargado da população através da iniciativa UpSkills. Importa ainda realçar, para terminar, que Portugal prepara-se para receber um conjunto muito alargado de apoios proveniente da União Europeia, sendo esta uma ocasião de ouro para capacitar o País em matéria de inovação, investigação e implementação de projectos-piloto, consolidando a sua presença na linha da frente no que respeita ao desenvolvimento sustentável com base numa forte componente tecnológica assente na desmaterialização, descentralização e transparência, pilares fundacionais da tal marca «Confia» que aqui fomos fazendo referência. Espero que tenha conseguido contribuir com algumas ideias e apontado um roadmap para atingir tais objectivos, para os quais aliás demonstro a minha total disponibilidade em colaborar e convido outros a o fazer.