Da próxima vez que ouvir alguém queixar-se da burocracia em Portugal, vou recomendar-lhe uma visita a Bruxelas. E não me refiro apenas à pesada estrutura administrativa das instituições europeias. A verdade é que os serviços públicos, na Bélgica, são incrivelmente arcaicos e sibilinos. Na era da informatização e da desmaterialização, tudo tem de ser feito presencialmente (segundo horários de atendimento incompreensíveis), em papel e com documentos originais. Para cada matéria há um procedimento completamente diferente, com formulários específicos, exigências redundantes e trâmites a serem cumpridos escrupulosamente de acordo com uma determinada sequência. Apesar disso, a resposta dos serviços é absolutamente imprevisível e dependente da boa-vontade do funcionário que nos calha em sorte. Vou dar-vos apenas dois exemplos.
Comprei recentemente um carro. Para obter a matrícula e poder circular com ele necessitava, basicamente, de reunir três carimbos, de diferentes entidades, num documento rosa. Senti-me de novo na Expo-98, a colecionar os carimbos dos vários pavilhões. Tinha, no entanto, um pequeno problema: o stand só me havia enviado um scan do referido documento rosa. Iniciei, assim, o processo de recolha dos carimbos – que deveria obedecer a uma ordem específica – já de pé atrás, sempre com receio de que o tal scan não servisse. Na primeira paragem, consegui facilmente o carimbo pretendido, embora me fossem avisando que a administração fiscal provavelmente não aceitaria aquele papel. Passei à etapa seguinte, junto da companhia de seguros. Olharam com ar desconfiado para o papel que lhes apresentei, alertaram-me que dificilmente me safaria com aquilo, mas lá puseram o bendito carimbo. Seguia-se o desafio mais complicado: as finanças.
Deveria deslocar-me aos serviços centrais do fisco belga, sediados num edifício enorme na zona da Gare du Nord. Lá dentro, no 11.º andar da torre A, rigorosamente entre as 9:00 e as 11:30, poderia terminar o meu calvário. Da primeira vez que lá fui, porém, bati com o nariz na porta. Era uma terça-feira de manhã, como qualquer outra. E, no entanto, por qualquer razão que ainda hoje me escapa, as finanças da Bélgica não funcionavam naquele dia, o edifício estava fechado e não se via vivalma em todo aquele arranha-céus. Que voltasse amanhã, recomendou-me pelo intercomunicador um solitário segurança. Assim fiz. Desta vez consegui franquear a porta e chegar ao meu destino. Após meia-hora de espera para ser atendido, lá veio o veredicto que mais temia: obviamente aquele scan não servia. Teria de obter o original do documento rosa e iniciar todo o processo de novo.
Mais complexa ainda foi a autêntica prova de obstáculos que tive de superar, uns meses antes, para receber um “subsídio de instalação”. Para o efeito, deveria provar que me instalei efetivamente em Bruxelas. E como poderia eu fazer isso? Antes de mais, assinando uma declaração de honra em como aqui vivo. Mas, como a minha honra aparentemente vale pouco para os burocratas de serviço, teria ainda de entregar uma cópia – certificada, claro está – do meu contrato de arrendamento, mais dois comprovativos do pagamento da renda, mais duas faturas de água, gás ou eletricidade, mais um certificado de residência. Não, uns documentos não eram em alternativa aos outros. Teria mesmo de os reunir todos.
O que se revelou mais complicado de obter foi o certificado de residência, um documento oficial passado pela Commune. O sítio em si é deprimente e opressivo, cheio de guichets à antiga, com lâminas de vidro a separar quem atende de quem é atendido, funcionários cinzentões (um chegou mesmo a atirar um requerimento recusado para o meio do chão) e dezenas de cidadãos à espera, sem lugares suficientes para se sentarem. Se não houvesse computadores por todo o lado, diria estar na mesma repartição a que a minha mãe me levou, nos anos 80, para tirar o meu primeiro BI. Com uma diferença, porém: do BI tratava-se numa tarde; neste caso, obter o malfadado certificado de residência implicou nada menos que três deslocações, sempre com resultados diferentes, e consequentemente três manhãs perdidas. Da primeira vez, ainda não tinha chegado um papel da polícia local (que, por si só, justificará toda uma outra crónica). Da segunda vez, uma senhora explicou-me que não podia emitir o pretendido certificado porque eu estava dispensado de ter residência cá (?!). Da terceira vez, sem que nada tivesse mudado entretanto, as objeções anteriores magicamente desvaneceram-se e lá me passaram o raio do documento, sem sequer pestanejar.
Agora a cereja no topo do bolo: eu precisava do certificado de residência, emitido pela Commune, para entregar na instituição onde trabalho. E como é que a Commune sabia que eu cá resido? Porque a instituição onde trabalho lhe tinha comunicado! Portanto, a minha entidade patronal exigiu-me um documento oficial da Commune para atestar uma informação que tinha sido aquela a fornecer a esta. Burocracia no seu estado mais puro.
VISTO DE FORA
Dias sem ir a Portugal: 22
Nas notícias por aqui: em fevereiro de 2015, numa rusga para apreensão de estupefacientes, a polícia belga tinha confiscado o telemóvel de um dos terroristas que, nove meses depois, executou os atentados de Paris. No entanto, as informações aí contidas nunca chegaram a ser analisadas porque o telemóvel misteriosamente desapareceu. Ora, parece que esse mesmo telemóvel foi encontrado agora, escondido debaixo duns papéis, na esquadra de Molenbeek.
Sabia que por cá: quando se pede um chocolate quente vem um copo de leite branco aquecido e um pauzinho de espetada com um cubo de chocolate embrulhado na ponta; depois há que desembrulhar, mergulhar o chocolate no leite, esperar que derreta e, enfim, saborear.
Um número surpreendente: 5€, foi quanto paguei recentemente por uma viagem de avião entre Bruxelas e Oslo (gastei cinco vezes mais para chegar de casa ao aeroporto).