A primeira imagem que guardo de Montreal é a de uma grande mancha de verde rodeada de água, como o pano de fundo de um quadro de Monet. À medida que o avião aterrava naquela sexta-feira, dia 19 de setembro de 2008, juntou-se ao verde e ao azul do rio Saint-Laurent, o vermelho sanguíneo dos tijolos que revestem metade das casas da ilha. Mais do que uma primeira impressão, desde cedo percebi que proteger o ambiente e integrar a natureza no espaço urbano faz parte da identidade desta cidade.
Na origem do nome Montreal, está o monte que ocupa o centro da cidade. Um verdadeiro pulmão, o Mount-Royal tem mais de 200 000 árvores e é o habitat para uma grande variedade de espécies vegetais e animais: 65 espécies de árvores, 600 espécies de plantas, 180 espécies de aves e 20 espécies de mamíferos. Talvez isso ajude a perceber o amor dos montrealense pela natureza.
Qualquer que seja a estação do ano, as pessoas desfrutam do monte, mas também dos vários parques e jardins espalhados pela cidade. No verão, a paisagem enche-se de piqueniques, biquínis e crianças numa versão contemporânea do Parc Monceau como o retratou várias vezes o pintor impressionista; no outono, a beleza efémera das folhas que se transfiguram em dezenas de cores diferentes antes de caírem é o pretexto favorito para se sair de casa. No inverno, o verde esconde-se, mas não é por isso que se fica condenado às quatros paredes: os lagos transformam-se em ringues de patinagem no gelo e até pistas de ski de fundo para competições internacionais, como foi o caso do ano passado. Trocam-se nas arrecadações os triciclos pelos trenós e da neve acumulada nos parques constroem-se montanhas, túneis e sítios secretos. Na primavera, as pessoas antecipam-se aos bolbos e os espaços verdes voltam a encher-se de cores e roupas de algodão.
E, como quando gostamos muito de alguma coisa tendemos a tomar bem conta dela, há um grande investimento político e dos cidadãos para integrar práticas sustentáveis e o respeito pelos bens naturais comuns. São alguns exemplos, o alargamento e construção de ciclovias nas zonas mais centrais para incentivar o uso regular da bicicleta, a adesão à compostagem doméstica, o respeito pela reciclagem, a expansão da agricultura urbana em tectos, os muitos jardins comunitários espalhados pela cidade, a proliferação de mercados que oferecem produtos biológicos, um bom sistema de partilha de carros (muitos dos quais são híbridos), o aumento de zonas verdes em sítios menos óbvios, entre outros. Não é também de estranhar quando os habitantes de uma rua ou bairro colaboram para a revitalização de um espaço comum, sobretudo quando o motivo é embelezar e melhorar a qualidade de vida dos residentes. O projeto “Ruelles vertes” é um dos melhores exemplos dessas boas práticas onde o espírito cívico resulta em serviço público e quando uma iniciativa de intervenção local tem impactos globais
Num sábado de setembro a caminho da casa do professor de piano dos meus filhos, no centro da cidade, passámos por uma ruela onde mais de 50 pessoas passavam flores, plantas e terra entre si. Verde, muito verde disfarçava o asfalto. Na rua, carrinhos de mão, ancinhos, tesouras de poda, canteiros em vias de ser. Em primeiro plano, um casal de meia-idade de enxada na mão, discutia se a quantidade de terra que estavam a pôr era suficiente ou não. Mais à frente, duas irmãs pré-adolescentes equipadas com luvas de jardinagem, mexiam na terra. “Eu prefiro as rosas e as tulipas”, respondeu-me a Mika quando lhe perguntei se tinha flores preferidas. “As plantas embelezam a rua”, disse a irmã. Percebendo que eu era portuguesa, Firmino Tristão de Lima, um açoriano emigrado há 22 anos e que está envolvido no comité de cidadãos da rua, disse-me logo que era importante incentivar as pessoas a cultivarem e a interessarem-se pelas plantas. “Um dia queremos fechar esta rua. Este é o primeiro passo”, disse.
Era mais uma rua a transformar-se em jardim. Mas não é de agora, isto de andar a ajardinar ruelas. A primeira rua verde em Montreal nasceu em 1997. Só este ano já foram criadas perto de 60 novas ruas verdes. Para que isso seja possível, é retirado uma parte do asfalto em cada lado da rua e são plantadas plantas indígenas, flores e arbustos. Em algumas ruas também se colocam bancos de jardim, canteiros e pinturas murais. E, embora sejam poucos os casos, pode mesmo acontecer retirar-se o asfalto por completo e substituí-lo com … relva.
Quando estava a falar com alguns jardineiros improvisados, encontrei Alex Norris, conselheiro municipal do bairro Jeanne-Mance do arrondissement do Plateau-Mont-Royal e membro do partido “Projet Montréal”. Aproveitei para lhe pedir que explicasse como é que funciona a iniciativa “Ruelle verte”. Disse-me que o que determina todo o processo é que o interesse tem de vir dos moradores de cada bairro porque só o envolvimento dos cidadãos assegura a durabilidade do projeto. O projeto conta com o apoio do programa Éco-quartier, um programa de educação e intervenção ambiental levado a cabo pelos cidadãos, e do arrondissement – divisão administrativa da cidade e que corresponde grosso modo ao termo freguesia em Portugal. No caso da ruela onde estávamos entre as ruas Prince-Arthur/Milton/Sainte-Famille/Jeanne-Mance, também conhecida como a ruela da festa dos vizinhos, o arrondissement foi o parceiro do projeto e ajudou nos serviços de escavação, oferta das plantas e aconselhamento em relação às plantas e flores mais adequadas à ruela e às condições meteorológicas. E, disse o conselheiro municipal, para que as coisas aconteçam mais rapidamente, há medidas que facilitam a aprovação do processo pelos órgãos do Poder Local. Tem de haver um número mínimo de cidadãos interessados para o projeto ser aprovado, mas passado o número mínimo só quem se opuser a tornar verde uma das ruelas do seu bairro é que se deve manifestar. Se metade das pessoas estiver de acordo e o projeto for aceite, a “ruelle verte” acontece.
Segundo Alex Norris, o objetivo desta iniciativa é uma vida mais verde. “Diminuir a circulação em ruas locais, “apaiser” a velocidade dos carros, melhorar a vida para as famílias”, disse. “Depois corrija isso para um melhor português”, acrescentou a rir-se e no sotaque de quem já viveu no Brasil. Mas não é preciso. Com mais para ou menos para ou um “apaiser” em vez de reduzir, o projeto fala por si.
Se imaginarmos que Montreal tem quase 500 km de ruelas percebemos o potencial desta cidade no que respeita à integração de novos espaços verdes.
Ver novos e velhos pela manhã de um sábado quente, a pôr as mãos na terra e contribuir assim para o bem-estar geral da sua cidade é uma paisagem mais bonita e evocadora de mudança do que os piqueniques com senhoras de sombrinhas e senhores de grande bigodes retratados no século passado. Mas uma coisa os impressionistas perceberam desde cedo: é que os jardins podem ser onde e quando o pintor, ou o cidadão quiser. E, com sorte, pode ser que a ideia também germine noutros cenários urbanos.
VISTO DE FORA
Dias sem ir a Portugal: 50 dias
Nas notícias por aqui: A corrida às presidenciais no país vizinho tem dominado as notícias por aqui.
Sabia que por cá… em 2007, Montreal foi a primeira cidade do mundo a assinar a Carta do Geoturismo da National Geographic Society? O objetivo desta parceria é a promoção de um forma de turismo que valorize o caráter geográfico da cidade, ou seja, o ambiente, a cultura, a conservação dos bairros, a manutenção dos espaços verdes e a proteção do património histórico.
Um número surpreendente: 98 é o número de ruas verdes no bairro Rosemont-La Petite-Patrie. Só nesse bairro, desde 2011, 3 158 m2 de asfalto, o equivalente a metade de um campo de futebol, foram transformados em jardim.