Era uma vez um guarda-chuva para dois, inscrito com a palavra “Fidelidade”, usado num fim de tarde molhado em Paris, corria o ano de 2016. Debaixo dele, resguardavam-se da intempérie Marcelo Rebelo de Sousa e António Costa, compondo uma imagem perfeita que imortalizou a aliança estratégica entre o Presidente da República e o primeiro-ministro.
Uma convergência entre órgãos de soberania, assumida como saudável cooperação, tendo em vista o bem maior da estabilidade, que se prolongou com poucos altos e baixos até ao final de 2022 – para descontento de uma direita que esperava ver um Chefe de Estado mais crítico e interventivo. Prolongou-se, mais precisamente, até à fatídica semana entre o Natal e o Ano Novo, em que o Governo experimentou a sua mais séria crise política, entre muitos casos e casinhos – e as coisas mudaram. Parece evidente: o clima já não é o mesmo na sociedade Costa e Sousa, Lda.
O Presidente da República (PR) assumiu, nesta crise, um papel decisivo desde o primeiro minuto. Enquanto o primeiro-ministro assobiava para o lado e seguia para férias, foi o PR que trouxe para cima da mesa explicações e factos relevantes, foi ele que falou na hipótese de devolução da indemnização de Alexandra Reis e que, pela primeira vez, falou da sua saída, foi ele que aventou que as saídas não se ficariam por ali e ajudou a forçar a saída de Hugo Mendes e de Pedro Nuno Santos, segurando Fernando Medina.
E foi também Marcelo Rebelo de Sousa que sublinhou, na bem embrulhada mensagem de Ano Novo, que a maioria absoluta vem com “responsabilidade absoluta” e que cabe ao Governo não “enfraquecer ou esvaziar” a estabilidade, “ou por erros de orgânica, ou por descoordenação, ou por fragmentação interna, ou por inação, ou por falta de transparência, ou por descolagem da realidade.” Linhas que resumem na perfeição o estado atual do executivo, e que ficarão inscritas no relatório e contas da sociedade Costa e Sousa, Lda., lançando os fundamentos para uma reestruturação que se adivinha no “ano decisivo” (palavras do PR) de 2023.
Pelo caminho, o Presidente ainda explicou qual o caderno de encargos para equacionar usar a “bomba atómica” e fechar a sociedade, que é como quem diz, demitir o executivo: é preciso que exista “uma alternativa evidente, forte e imediata àquilo que existe no Governo”, condição necessária para que esse ato-limite tivesse mais “vantagens” do que “inconvenientes”.
Para um bom entendedor de “marcelês” – e António Costa é-o –, fica feito o alerta em português suave: tem os dias contados a tolerância do Presidente da República para com um governo descoordenado e a tropeçar nos próprios pés, que veio com “vícios iniciais” que precisam de ser corrigidos. Como resposta ao “habituem-se!” de António Costa na entrevista que deu à revista VISÃO, Marcelo Rebelo de Sousa deixa uma mensagem nas entrelinhas: “organizem-se!”. E organizem-se rápido, senão…
Este “senão”, ilustrou-o claramente depois, ao comentar na terça-feira a remodelação light (longe da mexida “alargada” pedida por muitos) apresentada pelo primeiro-ministro, que anunciou a divisão em dois ministérios, a mudança de pasta de João Galamba e a promoção de Marina Gonçalves.
Palavras ainda mais fortes do que as pronunciadas no discurso de Ano Novo: “Mexer o mínimo possível” e “com a prata da casa” foi uma opção do chefe do Governo, disse Marcelo. “Se não funcionar tiraremos daí as conclusões.” Uma ameaça que repetirá por outras palavras: “Ou será um sucesso ou não será – isso cairá em cima do primeiro-ministro.” O mata-borrão, como há algumas semanas chamou a António Costa, ou funciona ou não tem serventia.
Do lado de São Bento, a situação complica-se, pois, ainda mais. Debaixo de fogo, exaurido de opções e escolhendo a solução fácil da continuidade “pedronunista”, com a pressão do Plano de Recuperação e Resiliência para executar e inúmeros problemas para resolver, António Costa encolhe-se debaixo do telheiro da sua maioria absoluta. Mas mesmo esse, que parecia tão sólido, não resiste a todas as intempéries. E o problema é que o guarda-chuva para dois já não está disponível.
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