As posições extremadas e tantas vezes irredutíveis de sindicatos e patrões não contribuem para o melhor clima de uma negociação urgente e necessária. As soluções quase sempre “rápidas, milagrosas e definitivas” prometidas pelos partidos políticos em épocas de campanha eleitoral também criam uma espécie de coluna de fumo que impede, depois, os cidadãos de se concentrarem no essencial em vez do acessório. Mas, entre slogans, frases feitas e promessas por cumprir, algo tem de ser encontrado, como denominador comum. É mais importante do que nunca que isso aconteça. Por uma razão simples e que não pode ser adiada: o tema dos salários dignos, da valorização justa do trabalho e da melhor distribuição da riqueza produzida é um dos debates mais importantes que deve ser feito em Portugal. Não só para resolver os problemas mais urgentes do presente, mas, acima de tudo, para nos ajudar a definir a sociedade que queremos ser no futuro.
O tema voltou à atualidade nas celebrações do 1º de Maio, como sucede todos os anos. Só que, como sempre, a discussão foi dominada pelas reivindicações e reticências acerca do aumento do salário mínimo, as referências ao peso da carga fiscal e, desta vez, ao objetivo, traçado por António Costa, “de reforço do peso dos salários no PIB para a média europeia”. O que fica depois de extinto o o “barulho” das reivindicações, das promessas e dos lamentos? Onde está a verdadeira discussão – que se faz há muitos anos em tantos países – sobre o que deve ser considerado um salário digno, e as suas consequências para a sociedade, a economia e até para a cidadania? Quando é que esse debate sobre a necessidade de uma “remuneração que garanta um padrão de vida normal” deixa de ser confundido com o aumento (justo!) do salário mínimo, como se não existisse alternativa ao nivelamento por baixo?
Em Portugal, mais do que nunca, é preciso um verdadeiro debate sobre os salários, sobre o que é, de facto, uma remuneração digna ou “decente”, como lhe chamam, apropriadamente, os franceses. Os resultados dessa discussão, se for séria e produtiva, terão reflexos em toda a sociedade – porque são os baixos salários a causa principal da fuga do País da dita “geração mais bem preparada de sempre” e também, não o podemos negar, uma das causas do nosso declínio demográfico. Se persistirmos na política dos baixos salários, iremos agravar também as hipóteses de sobrevivência da Segurança Social e estaremos a hipotecar o nosso progresso social.
Começa a ser mais ou menos consensual que a solução tem de passar pelo aumento dos salários médios e não só pelos mínimos. Ao mesmo tempo, a própria teoria económica está a conhecer evoluções e a abalar dogmas antigos, que foram seguidos como “verdades inquestionáveis” durante anos. Por exemplo, foi consensual durante décadas, entre os economistas, que a subida do salário mínimo levava a um aumento do desemprego. Pois, essa “certeza” ficou seriamente abalada, no ano passado, com a atribuição do Nobel da Economia ao trabalho de três investigadores (David Card, Joshua Angrist e Guido Imbens) que provaram que essa correlação… não existe.
Acima de tudo, mais do que económica, a questão dos salários dignos é política. E, por mais relevantes que sejam os indicadores sobre a produtividade e o crescimento económico, a discussão tem de ser sobre as escolhas morais e políticas que se tomam. Não pagar às pessoas aquilo de que elas precisam para ter uma vida decente é uma opção que não pode ser vista apenas sob o ponto de vista económico – reflete, isso sim, uma conceção de vida e de sociedade. É por isso que, ao nível internacional, cresce o movimento pelo salário digno, em que grandes empresas, em colaboração com a OCDE, se comprometem a garantir remunerações justas aos seus empregados, mas também a exigir que o mesmo aconteça com todas as empresas associadas na sua cadeia de abastecimento.
É importante olhar para esse exemplo no momento em que se vai começar a debater, na Concertação Social, a Agenda do Trabalho Digno, uma proposta do Governo que ficou dois anos interrompida, por causa da pandemia. A discussão já vem tarde, em comparação com outros países. Mas não pode ser adiada por mais tempo. Assim, todos os intervenientes nela estejam à altura do debate e da busca de soluções. De preferência, com menos dogmas económicos e melhores escolhas morais e políticas.