Quando, em maio de 2019, Joe Berardo compareceu na Assembleia da República para supostamente explicar o rombo milionário que causou na CGD – cerca de 320 milhões de euros, quase mil milhões a toda a banca –, o País acordou em choque. Ouviu o empresário, que foi o quinto homem mais rico de Portugal e se dizia uma lenda viva do “portuguese dream”, afirmar, sem qualquer pejo nem pudor, que “pessoalmente” não tinha quaisquer dívidas. Sempre com aquele sorriso de Jocker na cara, o intocável Berardo explicou que sempre tentou, qual benemérito, ajudar os bancos. O facto de não conseguir pagar as dívidas acumuladas não era com ele, nem tão-pouco com o seu parco património pessoal – uma garagem no Funchal. Era um problema “das pessoas que estão a dirigir estas instituições, que não sabem o que fazem”, esclareceu. É o velho provérbio da banca a acontecer aos olhos de todos: “Se deves 100 euros ao banco, o problema é teu, se deves 100 milhões, o problema é do banco.” E nosso, pois claro.
Joe Berardo é um hábil fura-vidas: aproveitou-se do sistema e dos seus podres e compadrios, pediu dinheiro irresponsavelmente, protegeu o seu património pessoal nos empréstimos, escapando pelos intervalos dos pingos da chuva debaixo dos olhos de conselhos de administração, consultores de risco, reguladores e polícias do mercado. Parece que o estamos a ouvir: “Relax, babe!”
Revoltados com o topete, os deputados tentaram um processo de retirada das comendas que recebeu de dois presidentes da República. Mas, entretanto, o País quase que se habituou a este tipo de declarações de desresponsabilização de grandes empresários devedores, de tal maneira têm sido frequentes (vide, recentemente, Nuno Vasconcelos e Moniz da Maia). A sensação de impunidade dos poderosos é um dos maiores catalisadores dos populismos. Gera compreensível indignação, quando o Estado e o sistema jurídico são vistos como fortes com os fracos, mas fracos com os fortes.
Mais vale tarde do que nunca, a Justiça acordou e agiu. Cinco anos depois de a investigação ter sido iniciada, 16 anos depois da concessão dos créditos, Berardo e o seu advogado, André Luiz Gomes, são agora suspeitos da prática dos crimes de administração danosa, burla qualificada, fraude fiscal e branqueamento. Parece que a coisa se complicou para o “portuguese dreamer”.
Os esquemas de abertura de empresas e fundações, o uso dos paraísos fiscais, os mecanismos de recuperação bancária usados para não saldar dívidas serão finalmente passados a pente fino. E, por mais difícil que seja a execução de bens, ela será decerto tentada pela via da figura legal da desconsideração da personalidade jurídica, já que Berardo tem, entre os seus negócios e haveres, a Quinta da Bacalhôa, a Metalgest e todo o conhecido vasto património de arte, dado como garantia aos bancos, que está a cargo da Fundação José Berardo e da Associação Coleção Berardo.
Deixemos, pois, a Justiça trabalhar, esperemos que de forma menos embrulhada do que na Operação Marquês. Mas, já agora, é preciso não esquecer que, durante anos, Berardo foi um peão para jogadas de bastidores dos poderosos, algumas movidas por dirigentes socialistas. Segundo contou no Parlamento, foi a própria CGD, dirigida então pela dupla Carlos Santos Ferreira e Armando Vara, que lhe propôs a operação de compra de ações do BCP, dispensando-o de um aval pessoal, de forma que este se tornasse parte ativa num golpe para afastar Jardim Gonçalves. Tal como, segundo Belmiro de Azevedo, terá sido José Sócrates que deu ordens à Caixa Geral de Depósitos para votar contra na OPA da Sonae à Portugal Telecom, financiando Berardo para este se opor à operação. Apure-se a culpa, sim, mas que não morra solteira.