O futebol, como se viu nos primeiros dias deste Mundial da Rússia, é bem capaz de ser o desporto mais democrático do mundo, além do mais popular e o que reúne maior número de praticantes em todo o planeta. É também o desporto em que o princípio da meritocracia se revela da melhor forma, sem constrangimentos, e plenamente aceite pelos seus atletas. Todos conhecem as regras: há milhões de jogadores, mas apenas 23 são selecionados para representar o seu país – e, desses, só onze, como se sabe, entram de início no relvado. São escolhidos, unicamente, em função do seu mérito e do interesse estratégico da equipa, graças às suas qualidades técnicas, à forma física e à força mental, independentemente da sua raça, credo, estatura, riqueza, grau de instrução ou até estilo de vida fora dos relvados. E todos eles sabem, também, que a sua permanência na equipa estará sempre dependente da sua prestação em cada jogo – medida, como sabemos, de uma forma tão transparente como o resultado final: a diferença entre golos marcados e sofridos.
Por mais polémicas que possam ser criadas e alimentadas por causa das escolhas de cada treinador, no fim, diz a experiência e sublinham as estatísticas, só o mérito evidenciado nos treinos e em campo permite que um jogador se mantenha, anos a fio, entre os onze escolhidos.
Ao contrário do que sucede noutros desportos, para vencer um jogo num Mundial, uma seleção não precisa de ser a representante de um país economicamente poderoso – aliás, as duas maiores economias do mundo, EUA e China, nem sequer conseguiram apurar-se para esta fase final na Rússia. E, mesmo na principal competição planetária, até a equipa de um país com uns escassos 340 mil habitantes, e uma cultura futebolística relativamente recente, consegue jogar de igual para igual com uma potência da modalidade, que tem um campo de recrutamento de jogadores mais de 100 vezes superior (como se viu no empate entre a Islândia e a Argentina)
No futebol, como temos visto tantas vezes, um jogador pode iniciar a sua carreira num pequeno e modesto clube de bairro e, graças aos seus méritos, ser contratado por um clube grande, ser chamado à seleção do seu país e atingir, até, o estatuto de estrela mundial, ganhando ordenados milionários. Sempre graças, acima de tudo, aos seus méritos, não importa qual a sua origem geográfica ou a condição socioeconómica dos progenitores. Mas também com uma certeza: apenas se manterá nesse estatuto se, semana após semana, competição após competição, continuar a demonstrar as suas qualidades.
Foi este o percurso de Cristiano Ronaldo, como sabemos: de um clube pequenino como o Andorinha, na Madeira, para o Sporting, Manchester United e Real Madrid, além de um caminho absolutamente inédito na Seleção: sempre a bater recordes e a deixar a sua marca como um dos melhores jogadores da História do futebol.
A verdade é que essa ascensão espantosa de Cristiano Ronaldo só foi possível devido à meritocracia do futebol. Noutra atividade qualquer, Cristiano Ronaldo teria de contrariar a estatística a que as suas origens pobres, na Madeira, o condenavam. Não só a ele mas também aos seus filhos, netos e bisnetos. Não é exagero, apenas a realidade plasmada no recente relatório da OCDE que analisou o chamado “elevador social” numa série de países: em Portugal, pode levar até cinco gerações para que as crianças nascidas numa família de baixos rendimentos consigam atingir rendimentos de nível médio. Mais de 50% dos filhos de trabalhadores manuais crescem… para se tornarem trabalhadores manuais. E, ao mesmo tempo, filhos de gerentes têm cinco vezes mais possibilidades de se tornarem gerentes do que os filhos dos trabalhadores manuais.
O maior recorde de Cristiano Ronaldo é talvez o seu melhor golo de sempre: o de ter contrariado a estatística do destino da mobilidade social em Portugal.
(Editorial da VISÃO 1320, de 21 de junho de 2018)