O caso da nomeação do procurador europeu, que tem sido tão criticado, contém apesar de tudo alguns elementos muito refrescantes. Em primeiro lugar, creio que é a primeira vez que um currículo com falsidades não foi aldrabado pelo próprio. Os casos de José Sócrates, de Miguel Relvas e de Feliciano Barreiras Duarte criaram, parece-me, algum cansaço, e desta vez acolhemos com alegria esta inovação: de facto, o procurador José Guerra tem um currículo fantástico (no sentido em que inclui aspectos fantasiosos), mas não foi ele quem os inventou. Há fraude, mas não do próprio. Nesse caso, trata-se de altruísmo. Aldrabar o currículo alheio é um gesto feio ou bonito? Conta como burla ou filantropia? Ilicitude ou amizade? É um debate muito interessante.
Em segundo lugar, também não me lembro de muitas ocasiões em que o Estado se engana a nosso favor. As autoridades portuguesas compuseram a José Guerra um currículo superior ao que realmente tem. Está numa maré de sorte como nunca vi, pelo que gostaria que José Guerra me dissesse cinco números e duas estrelas o mais depressa possível, antes que a fortuna o abandone.
Em terceiro lugar, o Ministério da Justiça preferiu indicar José Guerra para a Procuradoria Europeia, apesar de um grupo de peritos internacionais o ter classificado em segundo lugar, atrás da procuradora Ana Almeida. Também aqui registo com agrado a opção, como se diz agora, disruptiva: dar a vitória ao segundo classificado é uma operação à qual sou especialmente sensível em anos como este, em que o Benfica ficou em segundo tanto no campeonato como na taça. Na qualidade de aluno que nunca ficou em primeiro em qualquer avaliação, também me sinto vingado. Já era altura de aqueles que passam menos tempo a construir um currículo melhor verem homenageada a sua descontracção, e a até aqui negligenciada virtude de não serem garganeiros na obtenção de honrarias curriculares.
Para apurar com o máximo rigor o que se passou com esta nomeação de procuradores, talvez faça falta um procurador. Imagino que o Governo já esteja a escolher um e a inventar-lhe o respectivo currículo.
(Opinião publicada na VISÃO 1453 de 7 de janeiro)