A divertida inclinação moderna para a literalidade acaba de fazer mais uma vítima. Esta semana, calhou a Mamadou Ba, o activista anti-racismo, ser interpretado literalmente. É sempre engraçado. Quando alguém, tendo em conta o actual ambiente, desabafa que “já não se pode dizer nada”, querendo dizer, evidentemente, que já não se pode dizer nada sem ser interpretado literalmente, recebe logo a visita da brigada da literalidade, que, como é óbvio, interpretando ao pé da letra, lhe pergunta “ai sim? Mas vais preso? Não te deixam falar? Torturam-te? Tapam-te a boca?” É uma brincadeira um bocadinho repetitiva, mas nunca cansa. No caso de Mamadou Ba, ele resolveu cometer a maior imprudência a que uma pessoa pode atrever-se no nosso tempo: usou uma figura de estilo. A perigosíssima sinédoque foi perpetrada da seguinte forma: querendo exprimir a necessidade de destruir a ideia de supremacia branca, Ba optou pela formulação “é preciso matar o homem branco assassino, colonial e racista”. Ora, as pessoas que, quando ouvem dizer que alguém está a ler Camilo, supõem que o leitor foi exumar o cadáver para ler os ossos do escritor revoltaram-se. Neste momento, a petição para mover uma queixa-crime contra Mamadou Ba por incentivo à violência já conta com mais de dez mil assinaturas. No entanto, não houve violência nenhuma, nem é previsível que venha a haver. É uma das diferenças encantadoras entre palavras e acções: o acto de matar um homem branco só tem um significado; dizer que é preciso matar o homem branco pode ter vários, e nem todos são perigosos. Aquelas palavras, sendo as mesmas que se usam quando se incita à violência, têm ali outro significado – significado esse que depende de uma coisa à qual se dava atenção antigamente e que se chamava “contexto”. Talvez uma parábola sobre gastronomia torne as coisas mais claras. Ei-la:
Um homem está a almoçar num restaurante e manda chamar o chef:
– Este é o pior arroz de marisco que eu já comi.
E o chef responde:
– Mas o que o senhor está a comer é arroz-doce.
– Desculpe, isto é arroz, como o senhor acaba de admitir. E não presta. Só me sabe a açúcar e a canela. Onde estão os frutos do mar?
– Precisamente por não ser arroz de marisco, não tem frutos do mar. Repare – diz o chef, com calma –, se o arroz estiver no contexto da água, do sal e do marisco, é arroz de marisco; se estiver no contexto do leite, do açúcar, dos ovos e da canela, é arroz-doce.
– Não, não. Vou apresentar uma queixa-crime contra este seu arroz de marisco.
– É arroz-doce.
– Bandido.
Não sei se ficou claro que o mesmo ingrediente, dependendo do contexto, pode ter um sabor completamente diferente. As personagens da nossa história esforçaram-se muito para nos ilustrar: o chef com a sua paciência pedagógica; o cliente com a sua impertinência ignorante. Não tenho muita esperança de que a parábola contribua para grande coisa, uma vez que a brigada da literalidade é vasta, muito diversa e, além de comer arroz-doce a pensar que é arroz de marisco, também come gelados com a testa.
(Crónica publicada na VISÃO 1447 de 26 de novembro)