Primeiro, Marta Temido convocou uma conferência de imprensa para afirmar, com o apoio de gráficos, que a situação do País era “complexa e grave”. Depois, Mário Centeno disse que “a crise ainda não acabou”. Não sei se fui o único, mas fiquei com saudades do tempo em que os titulares de cargos públicos faltavam à verdade. Além do trabalho envolvido na elaboração de uma narrativa nova, havia nisso também uma certa generosidade da qual tenho saudades. Por um lado, apreciava o esforço criativo que era necessário para, alterando a ordem dos factos, ou mesmo inventando outros, apresentar aos portugueses uma história alternativa. Por outro, confesso que sinto falta da sensação de estar a ser enganado. Há sempre uma secreta esperança de que parte da mentira possa passar a ser verdade. Mesmo quando recebo aquele email em que o príncipe da Nigéria me nomeia seu legítimo herdeiro, durante um centésimo de segundo parece-me não só plausível como até justo que eu embolse uns milhões de nairas que ninguém quer reclamar.
A tendência para dizer o óbvio parece indicar que ninguém se sente culpado. Quando uma criança parte uma jarra, inventa uma história em que um gigante fez tremer o chão, abanando a mesa e partindo a jarra. Quando é o pai que parte a jarra, a criança limita-se a dizer “o pai partiu a jarra”. Por muito que o pai tente suborná-la para que ela não seja parva e queixinhas, prometendo-lhe até vários pacotes daquelas gomas com cores que nem sequer existem na Natureza e que devem prejudicar irremediavelmente o seu crescimento saudável se ela não disser nada à mãe. Ora, como ninguém tem culpa do vírus, ninguém se sente na obrigação de inventar uma história com gigantes. Limitam-se a comunicar-nos que está tudo perdido. Eu só pedia um pouco de delicadeza. Pelos vistos, se Marta Temido pilotasse aviões, pegaria no microfone para dizer: “Senhores passageiros, o combustível acabou e vamos agora em direcção a uma montanha que tem um ar especialmente rijo. Preparei alguns gráficos que detalham com bastante exactidão o que vai acontecer às vossas cabeças assim que contactarem com a superfície rochosa do complexo montanhoso. Continuação de boa viagem.”
(Crónica publicada na VISÃO 1443 de 29 de outubro)