As pessoas que fazem questão de se referir ao coronavírus como “o vírus chinês” merecem o meu reconhecimento. Nutro profunda admiração por quem tem espírito científico, e mais ainda por todos aqueles em quem o espírito científico surge associado a uma vocação para controlador aduaneiro. Conhecer o vírus do ponto de vista científico é importante, mas dar uma vista de olhos no seu passaporte também dá jeito. Imagino que estas pessoas, após serem atropeladas, comuniquem ao médico, à chegada ao hospital, a marca do veículo que as atropelou, para que ele saiba se foram vítimas de um atropelamento francês, sueco ou alemão, e possa determinar o tratamento adequado.
A identificação da nacionalidade do vírus vem preencher uma lacuna há muito geradora de grande incómodo: nunca temos a informação sobre o país de que são oriundos os vírus – e, o que também perturba, dos germes em geral. Nunca se ouve falar da bactéria húngara, do fungo norueguês ou do protozoário alemão. São sempre bactérias, fungos e protozoários, sem referência à nacionalidade, à filiação e, já agora, a qualquer outro dado do cartão de cidadão do germe em causa.
Como é evidente, avanços científicos como a atribuição de nacionalidade a um vírus trazem problemas, que promovem debates muito interessantes. Por exemplo: se um cidadão italiano contrair, em Roma, o vírus chinês, a nacionalidade do vírus mantém-se? O que vale, para agentes infecciosos: o jus sanguinis ou o jus soli? Uma vez que o soli em que o vírus se move é precisamente o sanguinis do doente, o assunto adquire uma complexidade inesperada. Outra questão: sendo todas as outras doenças até agora apátridas, não será conveniente tratar da emissão de vistos, de agora em diante? Tenho duas ou três borbulhas lusitanas na testa, produto de acne português, que continuam sem documentos.
Há ainda o problema de saber se a atribuição da nacionalidade ao vírus é plenamente satisfatória. Há muito azeite português, mas o azeite de determinada cooperativa nacional pode ser superior ao de outra. Do mesmo modo, quando era pequeno apanhei varicela do meu colega Paulinho. Contraí o vírus português ou, especificamente, o vírus do Paulinho? O meu pediatra, indiferente às idiossincrasias transmitidas ao vírus pelo Paulinho, recomendou o controlo da febre com paracetamol e banhos com água morna. Irresponsável.
(Opinião publicada na VISÃO 1416 de 23 de abril)