Tenho coleccionado as figuras de estilo da pandemia e, lamentando embora a já habitual escassez de silepses, devo dizer que vou registando com agrado alguma variedade de recursos. Começo por referir a prosopopeia, com que alguns místicos têm posto palavras na boquinha minúscula do vírus. Apesar de serem, na sua maioria, ateus, estes autores acreditam, ao que parece, que a deusa Gaia, ofendida com as emissões de carbono, o degelo das calotes polares e o consumo imoderado de gorduras saturadas, enviou o seu filho Corona à Terra, não para redimir os nossos pecados, mas para os assinalar e punir. Depois de ter gerado os doze titãs, os três ciclopes e os três hecatonquiros, a Mãe-Terra dedica-se agora a empreitadas bastante mais pequenas e concebeu um agente infeccioso submicroscópico para castigar o nosso estilo de vida desrespeitador da Natureza. Provavelmente cega pela ira, em vez de inventar um tsunâmi que levasse todos os carros a diesel ou uma praga de gafanhotos que destruísse especificamente as empresas petrolíferas, produziu um vírus que é especialmente nocivo para idosos e pessoas com problemas respiratórios. Pelos vistos, há uma relação directa entre a desertificação da Amazónia e a bronquite asmática.
Há ainda duas metáforas bastante populares, mas difíceis de sustentar: uma militar e outra náutica. A militar é a da guerra: estamos em guerra contra o vírus, os profissionais de saúde estão na primeira linha de combate, todos temos de nos proteger da ameaça. É uma metáfora problemática porque o inimigo não sabe que estamos em guerra (o que é raro, nas guerras), os soldados não têm armas capazes de matar o inimigo (também não é frequente), a protecção é lavar as mãos com água e sabão (não é das acções bélicas mais espectaculares).
A metáfora náutica é: estamos todos no mesmo barco. Também é deficiente porque fica um pouco aquém da realidade, se não for desenvolvida. Talvez estejamos todos no mesmo barco, mas é um daqueles barcos grandes, em que há camarotes de primeira classe e camaratas no porão. E o porão já começou a meter água. Portanto, e em resumo, se vai operar figuras de estilo, deixe as metáforas náuticas para os engenheiros navais.
(Opinião publicada na VISÃO 1414 de 9 de abril)