Eu estava na poltrona cor de vinho, a ler Mystery and Manners: Occasional Prose da Flannery O’Connor, a minha mãe cabeceava no sofá grande sem conseguir afugentar o fim de tarde sonolento, Chegaste a conhecer o pai do teu pai, o teu avô António?, pergunta-me. Interrompo a leitura, Sim, mãe, ele viveu connosco uns tempos, em Luanda, Ah, pois foi. Adivinho o resto da conversa, Sais a ele, o teu avô também estava sempre a ler, lembras-te? Respondo que era muito pequena nessa altura, tentando retomar a leitura. Passados uns minutos a minha mãe esquece-se da conversa, um solavanco mais cavado entreabre-lhe os olhos e pergunta-me a mesma coisa, Chegaste a conhecer o pai do teu pai? Repete, Até os livros de Matemática da tua irmã lia, os livros de Matemática e as listas telefónicas.
Sempre me disseram que herdei isto e aquilo do meu avô António. Nada de mal – era um homem alegre, gostava de ler, de estar com amigos, de festas – mas também nada de muito bom – tinha uma vida diferente da dos outros, desregrada, perdida da família. Não posso saber se têm razão, não me conheço vista de fora, mas acontece-me tantas, tantas vezes, sentir-me triste, querer ficar só. E nunca me afasto de casa, condenada por amores que emperram a minha vontade de partir. Não me conheço vista de fora, nem conheci bem o meu avô António. Nos demorados meses em que vivi em Trás-os-Montes, fiquei na aldeia de Fonte Longa, ao cuidado dos meus avós maternos e raramente o vi. Ele vivia no Amedo, mas, há perto de cinquenta anos, os oito quilómetros que separam as duas aldeias eram quase intransponíveis. De vez em quando encontrávamo-nos na feira da Carrazeda.