A Alice não tinha dentes e mastigava em falso, como fazem as pessoas sem dentes. Talvez tivesse preguiça de instalar a dentadura que estaria, sabe-se lá, a boiar na água de algum copo na mesinha de cabeceira, entre folhetos, uma Bíblia pequena, daquelas com um fecho dourado e a extremidade das folhas a vermelho, um terço já gasto de tanto uso, uma moldura com uma fotografia antiga de algum falecido que, pelo menos daquela vez, anuiu, pelo que se vê, ao imperativo “sorria” que alguma voz vinda de um daqueles carapuços onde os fotógrafos de antigamente enfiavam as cabeças terá vociferado forte e convincentemente. Quem seria o falecido? Essas fotografias emolduradas em caixilhos antigos percorrem o seu inexorável ciclo de vida. Como tudo, como nós, como as nossas fotografias e as dos nossos filhos. Numa primeira fase, em que um certo estatuto de relevância ainda vigora, moram por cima de mesas importantes. À medida que novos retratos as empurram para as bordas, vão cedendo lugar de destaque, transitam para o batalhão de molduras e cartões de boas-festas do aparador do quartinho da televisão, passam por mesinhas de cabeceira de velhas sem dentes que mastigam em falso, esgrimem seu espaço entre bíblias, terços e frascos de comprimidos, até que algum dia uma qualquer alma-de-deus mais pragmática e implacável, das que dizem coisas como “passamos lá e damos uma arrumadela geral”, as envolve em folhas de jornais de ontem, imprestáveis como fotografias velhas, mortalha última dos objetos sem uso, e hão de jazer para sempre em caixotes de cartão nalgum sótão, quer dizer, para sempre não, até ao dia em que algum casal novo comprar a casa e passarem os sempre zelosos e vigilantes camiões de lixo a levantar a tralha, abutres motorizados que secam a carniça última que se agarra aos ossos dos despojos da vida. Essa tal Alice era prima da minha avó paterna e tinha uns olhos muito azuis, que pareciam boiar por trás de uma camada gelatinosa que envolvia o olho todo, e a parte branca dos olhos era raiada de vermelho-sangue, olhos de lagarto do deserto em asfixia. Vivia lá na casa dos meus avós paternos e provocava-me um medo de morte. Era madrinha do meu pai e tinha tocado piano em nova. Música e juventude eram duas realidades que a minha imaginação era incapaz de associar a essa Alice com nome de criança mas corpo de velha que mastigava em falso e passava os dias sentada numa cadeira do quartinho da televisão, cujo acesso se dava por um corredor de pé direito alto adornado a quadros com motivos do inferno, crianças em fila, à vez, trespassadas por lanças de justiceiros com chifres que operavam o seu infernal labor junto a um enorme caldeirão. É, acho que todas as nossas melhores fotografias vão acabar numa mesinha de cabeceira, junto a um copo de água com uma dentadura a boiar lá dentro, antes de serem embrulhadas na mortalha de algum jornal velho, com notícias usadas de eventos futuros, entretanto já passados, antecâmara da vala comum de todas as coisas que já não servem.
(Crónica publicada na VISÃO 1430 de 30 de julho)