Acordei e não tinha de fazer a mala para passar a noite fora. Não tinha de organizar o material e a caixa dos CD para vender. Não tive de estar pronta a horas para chegar ao ponto de encontro antes dos demais. Nem entrei na carrinha, parada em frente à casa do Diego, à espera de que os membros da banda fossem chegando e ocupando os seus lugares. Não perguntei ao Mário quanto tempo demoraríamos até ao destino, nem a que horas seria suposto chegarmos para as montagens. Não ouvi as novidades, nem pus a conversa em dia com a equipa. Não sei se o filho do Sérgio já dorme melhor, se o Luís já acabou o disco, ou como foram as férias da Virgínia. Não tive de estar à espera do ensaio de som num camarim sem sofá e a cheirar a rissóis. Não tive de comer os rissóis, já cansados, por tédio ou mesmo por fome. Não tive de fazer ensaio de som. Não tive de pedir para ouvir mais alto a minha voz e menos a guitarra. Não tive de procurar algo leve na ementa do restaurante, pensando no tempo que teria para fazer a digestão. Não tive de vestir a roupa que escolhi de véspera. Nem de passar um batonzinho. Não tive de ir à casa de banho várias vezes com o nervosismo. Não tive de beber a água das pedras da praxe, aos golinhos pequenos, olhando para o relógio. Não tive de repetir aquela letra em surdina, com medo de me esquecer. Não tive de subir as escadas do palco com um roadie a iluminar o caminho com uma lanterna. Não tive de entrar com o pé direito. Hoje não há concerto. Nem hoje, nem nos últimos meses, e não me parece que haja tão cedo.
Entretanto, o que parecia estar controlado descontrolou-se (q.b.), expondo a pobreza, a falta de condições de trabalho, a segregação territorial, a concentração habitacional e a saturação dos transportes públicos, nos subúrbios da Grande Lisboa. Este surto diz-nos mais sobre o (sub)desenvolvimento do País do que sobre a pandemia. E vem reforçar um discurso latente, de que precisamos de medidas musculadas para conter este problema. Em vez de discutirmos as condições de vida destas franjas da população, somos rápidos a apontar o dedo à suposta inconsciência dos jovens, com a sua necessidade de lazer.
Parece-nos aceitável que se corra risco de vida para trabalhar, na linha de montagem, na obra ou mesmo no autocarro, mas clamamos pelo recolher obrigatório que impedirá o usufruto do tempo livre (lá está) em liberdade. São cada vez mais populares as proibições e adiamentos de espetáculos, mesmo que com lotação limitada, distanciamento social assegurado e muitas vezes ao ar livre, como se fosse pecado querer absorver cultura num momento destes. Ou mesmo como se o vírus apenas atacasse os ociosos. Sem perceber que, quanto mais proibimos o lazer em espaços controlados e cumpridores das orientações da DGS, mais estimulamos as festas e ajuntamentos informais, domésticos ou em lugares com poucas condições de segurança. Sem perceber que, num momento tão delicado da nossa economia, boicotar a cultura, já bastante moribunda, demonizando-a ou reforçando a ideia de que é supérflua e evitável, é matar um setor que cria empregos, atrai turistas e mantém a nossa saúde mental.
A turba das redes sociais, o tom dos jornalistas televisivos, as bocas nos cafés apoiam as proibições, clamam por controlo apertado, insurgem-se contra eventos organizados com todas as condições e apoiam atitudes autoritárias e populistas de autarcas com tiques de tiranete.
Meus amigos: nós, trabalhadores do setor, também temos filhos, contas para pagar e necessidade de trabalhar. Para vocês, pode ser apenas lazer; para nós, é mais do que um sustento, é a nossa vida. Havendo condições para cumprir as regras de saúde pública, peço humildemente: deixem-nos trabalhar! E peço também cautela. Que este clamor por mão pesada não induza os nossos governantes a “endurecer” para longe da democracia, porque, apesar de parecer que sim, o que arde nem sempre cura e o que aperta poucas vezes segura.
(Crónica publicada na VISÃO 1427 de 9 de julho)