Eu nasci em Águas Santas, na Maia. Mas a minha família Araújo é do Porto. Do centro do Porto, mesmo, do Largo de São Domingos. Ali pelos finais do século XVIII migraram de Guimarães para lá e estabeleceram-se como comerciantes. Em 1829 abriram uma papelaria que ainda existe, chamada Araújo e Sobrinho. Diz-se, com aquele orgulho que vem de preservar as coisas antigas, que é a papelaria mais antiga do mundo ainda na mesma família. Diz-se isto no seio da família, claro. É mais uma daquelas coisas que podem não ser verdade. São mitos de família que vão fermentando de geração em geração, como nos Cem Anos de Solidão do García Márquez, em que a certa altura se garante que havia antigos que nasciam com cauda de porco. Mas também pode ser verdade. Só que eu nasci em Águas Santas, na Maia, e por lá cresci. O meu trisavô, ou então tetravô, não sei ao certo, ao cabo de dois ou três anos de azáfama burguesa de centro de cidade, decidiu que por ele bastava e mudou-se para uma zona rural, ainda naqueles tempos em que se ia do Porto para a Maia em carros de cavalos e se demorava não sei quantos dias, morriam uns pelo caminho e nasciam outros, a comitiva pernoitava em estalagens onde aparecia alguém para tratar dos cavalos e onde a senhora matava um galo para o jantar. E por Águas Santas se foram ficando. Com o passar do tempo lento, em toda a sua velocidade e voracidade furiosa, a cidade foi metastizando as suas garras de caranguejo para lá de si e Águas Santas foi apanhada pelos prédios, metamorfoseando-se aos poucos numa cidade dormitório do Porto. E a minha família foi-se ficando, enclausurada numas quintas antigas, uma espécie de minialdeias gaulesas onde tratores se batiam com tróleis numa guerra de sempre entre o passado e o futuro. Foi assim que eu cresci, nuns minifúndios fechados ao resto do mundo, onde raramente se ousava contra o mundo lá fora. Eu às vezes acompanhava a minha mãe numas incursões à enorme Rua Afonso Henriques, para nos abastecermos de roupas de contrafação numa enorme loja que adequada e convenientemente se chamava Barulhão, comida ultracongelada no supermercado Ferreira, fotografias tipo passe para a matrícula do colégio no centro de fotografias Lupi e, por prémio, eu trazia um Pez Dispenser, uns cromos do México 86 e um ioiô Russell cinco estrelas. Depois era depositado em casa da minha avó, com muitos primos de idades próximas, onde o Carlos Jaime, que trabalhava lá, nos empurrava num carrinho de mão pela terra fora, numa gritaria interrompida invariavelmente pela minha avó, que contra-atacava com uma rajada de ameaças de morte. Julgo que nunca ninguém chegou propriamente a ser açoitado pelo chicote de couro pendurado desde sempre e para sempre na porta da despensa, mas ninguém queria ser o primeiro. O que é certo é que a minha avó parecia bastante credível, quando afirmava com todo o carinho que nos mimaria com a providencial arma branca até “tocar a quebrado”. Eu, que gosto de me debruçar sobre este tipo de expressões antigas, percebo hoje que “tocar a quebrado” significa qualquer coisa como “até os sinos tocarem por alguém que acaba de falecer”. Na altura eu não seria tão literal, mas a voz com que tais sentenças eram proferidas resultava credível ao ponto de não ser sequer necessário indagar sobre a respetiva semântica. Eram, sem dúvida, ameaças de morte. As casas já não existem, julgo que a loja Barulhão também não resistiu à inexorável marcha do tempo. Os sinos tocaram a quebrado pela minha avó em 2007, neste dia 13 de junho, e eu tenho muitas saudades. Acho que não passa um dia sem que eu me lembre dela. O chicote está bem guardado comigo, avó.
A minha avó
Julgo que nunca ninguém chegou propriamente a ser açoitado pelo chicote de couro pendurado desde sempre e para sempre na porta da despensa, mas ninguém queria ser o primeiro
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