Em junho de 1993 os Faith No More vieram tocar a Portugal, ao Porto, à Boavista. Eu tinha 15 anos e, pela primeira, única, última vez da minha vida, andava sintonizado com música feita num tempo atual, presente. Essa minha fase durou de 1991 a 1994. Até então, desde então, as minhas carências melómanas sempre foram supridas por música de gente já morta ou aposentada. Mas nessa altura eu vibrava com o que passava na MTV, ansiava pelo próximo disco das bandas, fiz fila pelo Vs dos Pearl Jam, pelo One Hot Minute dos Red Hot Chili Peppers, pelo Angel Dust dos Faith No More. Foi bom, durante esses três anos, ter com quem conversar sobre música, seguir o Alternative Nation, o Headbangers Ball com aquela loira queixuda que dizia “Thhhrash Metal”, ler a Guitar World, a Spin, a Kerrang!, acompanhar as novidades no balcão da Tubitek e da Peggy, no Brasília. Andar perto de música atual. Nunca tinha andado, nunca mais andei.
E os Faith No More, nesse mês, iam tocar ao pavilhão do Boavista, o entretanto extinto pavilhão Acácio Lello. Dava para ir a pé da rua onde eu morava. Dava para combinar com pessoal da minha idade. E no palco estariam aqueles vultos inalterados, intocados em relação à imagem que deles guardava. O Big Jim Martin com aqueles óculos, as pernas abertas em V, o Mike Patton de calções pretos a fazer aquelas coisas inimagináveis com a voz, a mesma voz do disco editado meses antes. No geral, das poucas vezes que me permito ir ver os meus ídolos em palco, deparo com fantasmas grisalhos, gordos, afónicos, passados do prazo, velhos. Mas os Faith No More, não. Seriam os mesmos dos vídeos da Midlife Crisis ou Everything’s Ruined. 1993 foi antes de o rock and roll se ter tornado uma negação de si mesmo, foi antes de essa música que apregoava rebeldia iconoclasta se ter tornado conservadora, apegada ao passado e às suas tradições. Esse dia de junho foi muito emocionante para mim. Fui a pé, com alguns amigos e, de repente, a hipótese de encontrar o Mike Patton a passar junto ao Bingo
da Boavista tornava-se perfeitamente plausível. O Roddy Bottum a subir as escadas do Dallas, a espreitar a montra do Peninha. O Jim Martin a apanhar o 78 para o Castelo do Queijo, talvez gostasse de ver o mar, nessa altura havia um barco naufragado, com o nariz de fora, ali junto ao Castelo do Queijo. Não vi nenhum Faith No More, mas podia ter visto. A Boavista, nesse dia, reluzia uma aura diferente. A MTV aqui tão perto.
Soube-se depois que os tratantes dos americanos alienados andaram a vandalizar as cascatas de água do Brasília, onde ficavam aqueles barquinhos. Andaram a fazer das suas nas escadas rolantes do Dallas. Quanta honra, astros da MTV a asneirar nos nossos shoppings. O mesmo Brasília em cuja Peggy eu me havia abastecido do Angel Dust meses antes. O mesmo Dallas onde eu comprava jogos piratas na JMS a partir dum catálogo fotocopiado. Será que também foram ao Frog do Parque Itália comer um hambúrguer com aquele molho cor de laranja? Que vergonha, o molho ficava duro ao fim de alguns minutos, dava para bater com as costas do garfo, espero que Mike Patton seja como eu, dos que comem depressa. Além disso, os hambúrgueres na América devem ser muito melhores que os do Frog no Parque Itália. Aliás, tudo deve ser melhor na América. Pelo menos uma pessoa liga a MTV, ouve a queixuda loira a dizer “Thhhrash” e fica com essa sensação. É que amanhã o concerto passou, os Faith No More voltam para a Califórnia e nós aqui, os barquinhos de fingir ali a bocejar dum lado para o outro naquele charco baixinho no meio do Brasília e na próxima sexta é dia de ir ao Frog.
(Crónica publicada na VISÃO 1382 de 29 de agosto)