Esta semana, as eleições intercalares servirão de barómetro à democracia americana e o prognóstico não anima: o Partido Republicano, profundamente minado por Donald Trump, surge como favorito para a maioria no Senado e o controlo da Câmara. Boa parte da base de apoio republicana está afundada em conspirações alucinantes, como a da suposta “fraude” eleitoral de 2020, o movimento Qanon ou a teoria da “Grande Substituição”. Herdada do nazismo, a teoria da Grande Substituição foi adoptada pelos sucedâneos de Trump no mundo e tem ganho tração. Em Portugal, por exemplo, é propagada às claras sem grande consequência.
Elaborada em 2011 num livro do francês Renauld Camus (já nem em alguém chamado Camus se pode confiar, tal maneira estão as coisas), a teoria do “Grand Remplacement” defende que a população branca está a ser ativamente substituída por imigrantes de outras etnias nos EUA e na Europa. A ideia não é, no entanto, nova – remonta à fundação dos EUA, foi explorada por Hitler e fez caminho entre grupos racistas, seitas e movimentos de extrema-direita. Nas últimas eleições francesas, Marine Le Pen e Éric Zemmour usaram-na nas suas campanhas, bem como grande parte dos protagonistas europeus da mesma família vão fazendo: Orbán na Hungria, Abascal em Espanha, Ventura em Portugal.
De acordo com um estudo da Associated Press-NORC, um terço (32%) dos americanos acredita hoje que existe um plano obscuro do Partido Democrata para deixar entrar imigrantes não-brancos no país e tomar controlo. Um terço. É, além do mais, uma ideia assassina. Repescada por Steve Bannon, proliferada por aliados de Trump na televisão, nas redes sociais e nos canais Youtube, a crença está por trás de dezenas de ataques terroristas e assassínios em massa. Vários dos atentados com motivações racistas mais sangrentos dos últimos anos (não apenas nos EUA, também na Europa), – tiroteios em escolas, em supermercados, em locais de culto – partem dela. Difundi-la a céu aberto é um incentivo ao ódio, uma ameaça à paz e à segurança mundial.
Em Portugal, quem o faz sem vergonha (ou qualquer sustentação factual) são líderes e militantes do Chega. André Ventura discursou no Parlamento sobre o suposto “problema estrutural” da “substituição demográfica” na Europa e no país. Nas redes sociais, militantes e seguidores ateiam, seguindo o rasto dos projetos políticos mais tenebrosos da História, a sensação de que Portugal está a ser “invadido”. Nas publicações, vídeos e notícias falsas, alimentam-se do medo e do tribalismo. Estão, como é habitual, fora da realidade: de acordo com o Eurostat, em 2021, a população não-europeia residente na União Europeia era de 5.3%. Em Portugal, apenas 6.4% do total dos residentes são estrangeiros, sendo que 40% deste total vêm de países europeus.
Se está visto que a História, a solidariedade e a Carta dos Direitos Humanos não demove os pupilos de Trump da xenofobia, considere-se ao menos o seguinte: no caso português, como pode um país de emigrantes, com milhões de nacionais e luso-descendentes instalados noutros países, hostilizar os (poucos) imigrantes que decidem viver e trabalhar cá? Mais: só entre 2010 e 2020, a Segurança Social portuguesa lucrou 5,2 mil milhões de euros com o contributo dos imigrantes. Lucro. O mesmo no seio da União Europeia, que beneficia em larga escala da imigração – não apenas económica, mas social e culturalmente. Sabemos que a lógica e os factos não é o forte dos nossos populistas de bolso, mas não é aceitável deixar voltar a infiltrar-se na opinião pública o pão que Hitler amassou. Como se vê pelos EUA, ou por França, aqui mais perto, não estamos imunes. É preferível combater já.
Na passada quarta-feira, chocámo-nos com as imagens das legiões de seguidores de Bolsonaro a fazer a saudação nazi nas ruas. As expressões de fanatismo, loucura e reacionarismo primário no rosto daqueles manifestantes – que são de todas as cores, géneros, credos e estratos sociais – são assustadoras. Nos EUA, teremos mais uma mostra do poder tenebroso das teorias da conspiração na manipulação das massas. A Europa tem de agir enquanto é tempo, percebendo que a fonte do problema está no descrédito do sistema. O “sistema” democrático tem de se dar ao respeito se quer a confiança das pessoas. Urge regular as plataformas digitais, mas assumir – a política e os media – uma postura que promova a confiança. A corrupção, a precariedade e as desigualdades sociais são ácido para o tecido de confiança, disseminam o ressentimento, a revolta e expõem as pessoas aos vendedores de banha da cobra. Resgatar as pessoas do caldo do ódio exigirá pedagogia e paciência, mas também mais transparência, comunicação e políticas sociais. Prevenir o problema também: trabalhar a confiança no sistema. Afinal de contas, dizem que a confiança é o mais importante nas relações.
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