Foi por uma unha negra. A vitória apertada de Macron é um alerta para a Europa e o mundo: ou a democracia responde às crises sociais, ou tem os dias contados. Le Pen conquistou perto de metade dos votos em França à segunda volta – já não são só “os deploráveis” de Hillary Clinton. Se é chocante que tantos relativizem um discurso autoritário, populista e racista, movido contra os valores fundamentais da civilização, há que reconhecer: “barrar a extrema-direita” não é um programa político.
É o recorde da ultradireita em França. Cinco anos de mandato conturbado bastaram para que uma das mais sólidas democracias europeias escapasse por pouco. Cá estaremos para as legislativas, em junho. Macron é reeleito numa posição frágil, tido como um presidente distante, elitista e socialmente insensível. Foram cinco anos crispados, de linhas vermelhas, de coletes amarelos, de custo de vida galopante, de estrangulamento dos mais pobres, com a pandemia e uma série de gafes incendiárias pelo meio. Há resultados positivos em indicadores económicos, que, como todos os números, servem para pouco se não se refletirem na vida das pessoas. No mundo real, a riqueza concentrou-se em menos indivíduos e a classe média perdeu qualidade de vida.
O flagrar dos populismos não advém de uma súbita vaga racista ou xenófoba. Resulta de problemas reais. Macron, como muitos líderes europeus, apresenta-se como embaixador de um sistema desigual, que deixou de oferecer esperança, segurança e prosperidade à maioria. E daí que a sua vitória não configure, de todo, um alívio. Ao fim de uma sucessão de crises, de sacrifícios impostos sempre aos mesmos, de frustração para os jovens, de desilusão para os velhos, de perda de direitos, de obstrução do sonho, este “sistema” não aguentará muito mais. Para durar, a democracia terá de responder às dificuldades da maioria.
Macron não venceu graças ao perfil de europeísta franco-alemão, nem graças à agenda ambiental forjada à última, nem graças ao neoliberalismo económico. Não é a vitória do localismo pelo globalismo. Venceu por encostar os eleitores à parede. Durante a campanha, fez por colar Mélenchon, candidato da esquerda, à extrema-direita, apostando na retórica dos extremos. (Muito temos ouvido falar de extremos!) Macron beneficiou do mesmo truque quando ganhou com o dobro dos votos, em 2017. O problema? A avaliar pela trajetória, esta pode bem ter sido a última vez que o eleitorado cedeu à dicotomia. Num futuro embate sistema vs. anti-sistema, aquilo a que se chama sistema pode muito bem cair. Já se sente o desgaste. Esta é evidentemente uma aposta com perna curta. Portugal, bem como todos os países onde os oportunistas da banha da cobra já esfregam as mãos, tem uma última oportunidade para perceber.
Para vencer os extremismos, não bastam apelos morais. Não bastam retóricas de heróis contra vilões. De nada nos valerá a chantagem moral, sem garantia de direitos, justiça social e combate das desigualdades. Há que fazer desse combate a grande arma da democracia. Como se diz em bom português, falta cumprir abril. Falta cumprir abril nas democracias liberais do séc. XXI.
Neste abril especial, em que os 48 anos de luz vingam os 48 de sombra, é tempo de chamar a voz de Sérgio Godinho para concluir que só haverá liberdade a sério quando houver a tal paz, o tal pão, a tal habitação, a tal saúde, a tal educação.
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